domingo, junho 18, 2023

ESpelho

Diz-lhe tudo, mesmo o que não sabes dizer.

Não receies os lugares comuns. Costumam ser, aliás, os mais confortáveis. Por isso senta-te num e encara a história desde o princípio.
Aceita a dúvida, o medo, a incerteza, e deixa que te levem, qual bússola interna, ao espanto original da utopia.
Adjectiva, sem medo, cada pormenor. É neles que reside a idiossincrasia da tua verdade. 
Não deixes nenhuma imagem desfocada, nenhum horizonte envolto na neblina. Antes fotografa cada segundo para que mais tarde saibas recordar. 

Diz-lhe tudo, principalmente o que custa dizer.

Não evites as hesitações, são elas que te dão o poder de rever o diálogo, a forma e a intenção de cada palavra que pensas antes de dizer.
Avança, em círculo ou em elipse. És tu quem desenha o enredo e decide o ritmo da narrativa.
Prende o tempo e usa-o a teu favor na conjugação de cada verbo. A acção nasce e morre em ti, sê dono do teu rumo e da tua maré.
Não fujas das tempestades que se adivinham ao virar de cada frase. Deixa que a chuva lave o pó das palavras e o vento encaminhe as frases na tua direcção.

Diz-lhe tudo, até o que achas que não é preciso dizer.

Não partas do princípio do que é óbvio nas entrelinhas. Aliás, não olhes sequer para as entrelinhas, elas são tão subjectivas como a forma das nuvens num dia de vendaval.
Perdoa, descomplica, e não olhes para trás se não para rever os álbuns onde te encontras com amor e respeito.
Nomeia todos e quaisquer sentimentos. Mesmo os menos claros. Mesmo os que desconheces o nome. Baptiza-os. Precisas deles para o desenrolar da teia.
Não te abstenhas das repetições. Diz e rediz quantas vezes forem necessárias à descrição fidedigna de cada momento.
Não desistas. Pára se for necessário. Volta atrás quando precisares. Navega à bolina e finta o tempo se te der jeito. Mas vai até ao fim. Mesmo sabendo que estarás a chegar a um novo início.

Diz-lhe tudo, mesmo que parece que não é nada.

Liliana Lima