sexta-feira, outubro 14, 2016

Como vestes os dias?

Visto o casaco cor-de-rosa e dou um laço na curva da cintura. Entro delicadamente nos escritórios onde oiço o burburinho dos teclados sob uma melodia descontínua de telefones que tocam e conversas rápidas. Entrego os documentos enquanto me endireito nos saltos e sorrio à recepcionista.
As horas chamam por mim.

Cá fora uma brisa morna leva as pressas que me fizeram chegar e desacelero o passo. O sol de outono ainda aquece e puxo a fita que desabotoa o laço cor-de-rosa do casaco com que, tipo embrulho, estava vestida. Enfio-o amachucado na mala e sigo de óculos de sol e cabelos ao vento. 
É altura de avançar.

Chego à porta da escola à hora certa. Abro um sorriso do tamanho dos portões enquanto as crianças, nervosas, procuram encontrar as caras conhecidas que os levam a almoçar. Saltito com o mais pequeno por entre tampas de esgoto e riscas de passadeira, cantamos músicas ao calhas entrelaçadas com rimas inventadas. Chegados a casa atiro com a mala para um canto e, ao mesmo tempo procuro o avental. Prendo o cabelo num rolo mal ajeitado e preparo o almoço. 
Em breve voltaremos ao portão.

Procuro o carro sem a bússola das lembranças, atraso-me pelas ruas onde todos os carros são pardos e o meu se escusa a aparecer. Finalmente apanho-o numa esquina da memória e corro para o consultório. No divã tento desesperadamente despir o avental e a saia, mas os sapatos de salto alto estão presos. Camada sobre camada arranco-me de cima de mim como um sobreiro. Há cascas que não saem completamente e outras que teimam em cair sózinhas no chão sem eu dar conta. Antes da hora certa, à pressa, torno a vestir-me e saio com a sensação de mal-estar de quem tem um casaco apertado demais e umas calças a cair.
Corro para a biblioteca.

Levo as malas, os rolos de lã, as purpurinas e os livros. Visto uma camisola com uma borboleta colorida e sigo para a sala onde as crianças já se amontoam à espera. Arrumo o cenário e concentro-me nas palavras. Em breve são elas que me comandam. Descalço os sapatos e conto-me o melhor que consigo, embalada numa história de encantar. 
Saio novamente.

Procuro o carro, desta vez preso à memória de um lugar e volto a casa. Entro no meio de risos e gritos de personagens que não conheço e que vagueiam pela casa saídas da televisão. Tiro a camisola e visto o pijama. O jantar está pronto e ninguém me ouve chamar. A sopa arrefece nos pratos enquanto resmungo e digo o mesmo que nos dias anteriores. 
Adormeço os miúdos e deito-me.

Dispo o pijama e deixo-me sentir a pele, o respirar e o pulsar que, aos poucos, se conjugam no mesmo compasso. Suspiro antes de adormecer e pergunto-me onde estou no meio das roupas que usarei amanhã.

Liliana Lima
12/10/2010