quarta-feira, agosto 12, 2015

Dos dias sem pôr-do-Sol

Como dizer dos dias claros que nascem na janela do quarto que dá para rua, por entre os carros e as pessoas e as crianças que passam e ecoam em sons que reflectem no tecto, enquanto, tranquila, me deixo acordar?

Como dizer dessas manhãs tranquilas, esperançosas até, que em tardes de Sol se transformam num 'tu cá, tu lá' com o Tejo como pano de fundo e os veleiros como pontos cardeais?

Como dizer das tardes doces em húmidos lábios abertos que se juntam, dedos singelos que percorrem os rios da vontade e levam os corpos até ao cume do desejo, que se esgota e se conjuga num singular a dois?

Como dizer do sorriso, ligeiramente encoberto, agora que olhamos para trás, que se enrosca na cumplicidade das horas que, afinal já são demais?

Como dizer do não dito mas tão bem entendido, tão visível e, no entanto, encoberto por um Sol que teima apagar-se antes do tempo para não iluminar o que, calado, grita em todas as ruas da cidade, rebolando até ao Tejo onde se repete em remoinhos circulares que se estendem até à outra margem? 

Como dizer da surpresa, que o é, não por inesperada, mas por esperançosamente adiada, do absoluto silêncio duma casa virada do avesso, onde todos comem à mesa no tecto sem que se assuma a intensa dor de cabeça associada ao absurdo aceite?

Como dizer da mágoa que magoa lá no fundo do corredor, à porta do quarto onde a janela virada para a rua, espera um pôr-do-Sol que não chega apesar do avançado da hora?

E o grito do silêncio
E o absurdo avesso
E a surpresa da aceitação
E o pôr-do-Sol da mágoa

Como dizer dos dias em que, podíamos jurar, vemos o Sol nascer "como sempre, como antes" e, com o correr dos ponteiros, o vemos girar em torno da realidade até que esta, de pernas para o ar, cai desastrosa e estrondosamente sobre nós, acordando a mágoa do absurdo que, afinal, esperávamos não mais encontrar?

Como?

Liliana
 
 
 


 

Moro numa casa inacabada
Feita de terra molhada
Com o céu às cavalitas
Entra, mas desculpa a confusão;
Anda tudo pelo chão,
Não contava com visitas

Comigo mora gente tão diferente
Que às vezes, pontualmente,
Só falamos por sinais;
Cada um tem na sua bagagem
Um bilhete de passagem
Pelos pontos cardeais

Na sala, uma velha cartomante
Lê ao cavaleiro errante
Um destino vencedor;
As cartas falam de perdas e danos
Para, no correr dos panos,
Encontrar o seu amor

Ao fundo, dorme um soldado sisudo
Com umas botas de faz-tudo
E uma paixão de aluguer;
O bêbado que está no quarto ao lado
Chora sempre em tom de fado
O amor de uma mulher

Aquela que tem o corpo na esquina
Diz que também foi menina
Há-de um dia ser feliz
O homem que a usou pelos quintais,
Como é norma entre iguais,
Compreende o que ela diz

Em cima fica o quarto dos amantes,
Dos poetas, viajantes
E dos loucos sem lugar;
Pintaram um baloiço na janela
Com a luz de uma aguarela
Para a lua baloiçar

Assim somos vizinhos de outras crenças,
De outros livros e sentenças
Outras formas de oração;
Mas quando a noite traz os seus momentos
Escapa destes aposentos
Um bater de coração

Revela-se a verdade nua e crua:
Chove mais do que na rua
Trago o fato ensopado
Aqui qualquer um é vagabundo,
Esta casa é todo o mundo
Falta só pôr o telhado

 "Casa inacabada"
Sérgio Godinho/Camané
Letra: João Monge
Música: Manuel Paulo
In: 'O Assobio da Cobra'