quinta-feira, julho 30, 2015

aguarela (in)acabada

Olho-te. Demorada e persistentemente procuro encontrar-te neste eu teu que pareço desconhecer.

Oiço-te com a maior atenção que consigo convocar, apesar das palavras que dizes arranharem os quadros pendurados nas paredes cansadas, cúmplices de tantos dias, anos, que se sucederam num caminho a par.

Procuro no meio dos teus cabelos, os caracóis morenos que me aconchegaram o desejo nas noites em que, navegando no meu corpo, me fizeram desaguar no teu.

Esforço-me por enquadrar esta cena numa qualquer série americana, onde nada é coerente e o tempo corre ao sabor das audiências com a certeza dum final feliz.

Quem és tu que, desse lado da casa, me falas como se comigo não vivesses a história que vivi contigo?

Olho para ti e não encontro nada que me aqueça. O calor que ainda agora, neste Pólo a desnorte, arrepiou os meus sentidos e rasgou as minhas memórias arrefeceu a cozinha e enregelou o chão.

Teremos vivido a mesma vida ou, lado a lado, criámos duas estradas em dimensões paralelas?

Esforço-me por manter intacto o teu eu que, me parece agora, criei ao correr dos ponteiros numa aguarela inacabada. É que, ao olhar para ti neste momento, não identifico o modelo com o retrato. Atiro ao chão as telas. E as aguarelas, por secar, escorrem da entrada até à sala onde as tuas fotografias ainda falam de nós.

Olho-te com muita atenção, projectando os dias que passam no tecto do quarto, deitado na vida que não deixo avançar.

Encontro-me e perco-te, desenho-te e apago-me.

Espelho-nos, por fim, numa história que não escolhi mas que, demorada e persistentemente, tento aceitar. 


Liliana