Levantei-me ontem sem saber da minha sombra. Levaste-a contigo no dia em que fechaste a porta e fizeste abanar o candeeiro da sala.
Mulher sem alma. Corpo sem sombra. A luz do sol não incide em mim mas através de mim.
Deixaste-me os olhos para nos ver em todos os cantos da casa, e as mãos para sentir o meu corpo nu de ti.
A sombra, aquilo que dá consistência ao meu ser, que me permite andar na rua, ser corpo à luz do sol e da lua, essa, foi contigo no dia em que fechaste a porta.
Agora ando sem rota, corro em busca de algo que me falta mas que não reconheço, vagueio à volta de mim própria sem saber o que procuro. Todas as esquinas me parecem iguais e nenhuma luz me ilumina. A cidade parece-me adormecida e rio já não canta ao correr para o oceano.
Levantei-me ontem sem saber da minha sombra. Deixou-me quando fechaste a porta com força e abanaste o candeeiro.
Liliana
"No dia seguinte, quando saiu para tomar o café e ler os jornais, e se viu ao sol radioso, exclamou: «Mas então que é feito da minha sombra? Terá ela abalado ontem e ainda não regressou? Seria caso digno de lástima.»"
'A Sombra' de Hans Christian Andersen
in Contos dos Homens sem Sombra