Que caminho tão longo pai... Que sois tão cansativos se interpõem entre nós, neste nós que perdeu, há tanto tempo, a possibilidade de ser.
Que viagem tão comprida nos inundou as memórias de infância, que bóiam sem rumo nem mastro neste aparente caos calmo.
Quantas
vidas teriam de passar para que nos pudéssemos sentar frente a frente
e, olhos nos olhos, conversar? Mas conversar sem palavras, que essas só
servem para enaltecer os que precisam de se ouvir a si mesmos fingindo
perceber o mundo. Conversar a sério, a valer, afinal nem só do presente é
feita a vida e nem todas as respostas estão no passado. Conversar
olhando, sentindo, ouvindo, acolhendo aquilo que somos ou pensamos
ser...
Que deserto tão grande... Que
areias tão finas que entram pela pele, se entranham e se colam a mim
por mais que as sacuda e empurre para longe. Estão cá dentro e fazem-se
ouvir nas noites de tempestade, rolando umas contra as outras com o
baloiçar do barco.
Estas
estranhas marés que, novamente me largam nesta ilha que conheço
tentando desconhecer, são apenas o reflexo da força do outro lado da
Lua. Não sou daqui, sei-o. E no entanto, um estranho sentimento de déjà
vu embala-me numa viagem remota ao centro do meu ser. Não sou daqui, mas
podia ser.
Fui
aqui um dia, há muitas vidas. Antes deste caminho tão longo, desta
viagem tão comprida, deste deserto tão grande... que afinal me trazem
sempre de volta aqui mesmo, a esta ilha de cacos espalhados e recortes
desarrumados feita, no meio de um enorme oceano de silêncio, caos,
desespero e solidão, onde nadas sem barco nem bóias. E eu, que fui aqui
um dia, há muitas vidas, não te posso puxar, não te consigo dar a mão. É
que eu, não sendo daqui, não consigo cá entrar.
Que
caminho tão longo... para perceber que tudo o que posso fazer é ser
ilha e aguentar a corrente das águas do passado. É ser terra em que
semeie o presente para que nasça a espiga de tudo o que pode vir a
nascer. É ser fonte onde jorre o tempo calmo de cada dia para que, às
vezes, quando te falta a terra e te escorrega o céu, te possa estender
uma ponte que te leve a quem, de facto, te pode ajudar, sem que isso me
leve de volta ao deserto.
Liliana Lima
26-Jan-2010
"Que caminho tão longo!
Que viagem tão comprida!
Que deserto tão grande grande
Sem fronteira nem medida!
Águas do pensamento
Vinde regar o sustento
Da minha vida
Este peso calado
Queima o sol por trás do monte
Queima o tempo parado
Queima o rio com a ponte
Águas dos meus cansaços
Semeai os meus passos
Como uma fonte
Ai que sede tão funda!
Ai que fome tão antiga!
Quantas noites se perdem
No amor de cada espiga!
Ventre calmo da terra
Leva-me na tua guerra
Se és minha amiga"
"Travessia do deserto" de José Mário Branco