Dou voltas
sobre mim à procura de uma mão para agarrar antes de saltar, e por fim é
também a minha que me toca de mansinho,
calma estou aqui, maternal,
está tudo bem, meiga,
tu consegues.
Aperto-a com força e fecho os olhos
enquanto me aproximo da linha que divide o aqui do ali, o certo do
desconhecido, o seguro do até agora ainda só sonhado e esbarro numa
parede de medos e receios.
Eu,
que acredito no arco-íris que me aponta a estrada e mostra a
estrela e baloiça as árvores de onde crescem as palavras que voam ao
vento e se espalham como sementes que acordam os sonhos que acendem, novamente o
arco-íris...
Eu, parada no medo e a parede a avançar...
calma estou
aqui,
aperto ainda mais as mãos e fecho novamente os olhos à procura das
cores...
Eu,
que me sirvo da palavra sem correntes nem amarras, para com ela voar e
num esgar de liberdade a multiplicar por mil olhares que valem muito
mais que todas as imagens do mundo a rodar num ecran de pano branco...
Eu, a esbarrar no medo e na parede...
está tudo bem,
uma tranquilidade
que se impoem e as palavras a dançar à minha volta numa cantiga de
roda...
Eu,
que sinto as histórias vivas a sussurrar aos meus ouvidos, a pedirem
para serem contadas na minha voz, vividas no meu corpo e acreditadas no
mais íntimo de mim, obediente, deixando-as tomar o castelo e atacar os
moinhos, ao mesmo tempo que as conto ao mundo ao abrigo das cumplicidades
que nascem dos olhos e se espalham pelo ar...
Eu, imobilizada com a
ideia do vazio...
tu consegues,
uma certeza tímida que espreita por trás
da chuva e lembra o sol de verão...
E
eu, que sei que consigo, a duvidar,
calma estou aqui,
a hesitar,
está
tudo bem,
a recuar,
tu consegues,
a parar...
Uma brisa suave empurra-me,
embala-me e recorda-me que eu sou eu, e que eu acredito na utopia,
sirvo a palavra livre e sinto as histórias vivas!
Dou-me novamente a mão
e, com a ajuda do vento, retomo o caminho.
Ao fundo, quase
imperceptível, um arco-íris brilha sob o céu lisboeta...
Liliana
"Ninguém me roubará algumas coisas,
nem acerca de elas saberei transigir;
um pequeno morto morre eternamente
em qualquer sítio de tudo isto.
É a sua morte que eu vivo eternamente
quem quer que eu seja e ele seja.
As minhas palavras voltam eternamente a essa morte
como, imóvel, ao coração de um fruto.
Serei capaz de não ter medo de nada,
nem de algumas palavras juntas?"
"O Medo" de Manuel António Pina, in "Nenhum Sítio"