domingo, dezembro 02, 2012

Silêncio, que se vai cantar o fado...

Naquele dia apeteceu-lhe ser para ela própria. Tinha obrigações, horas e afazeres obviamente, mas o dia seria sentido com ela colocada bem no centro de todas as variáveis que podia controlar.

Os filhos, as roupas, os atacadores, as horas, os lanches, as mochilas, os pequenos-almoços, as horas, e por fim a saída apressada e sempre atrasada correndo atrás... das horas. Não! Hoje não correriam, tomariam o pequeno-almoço inteiro e só depois sairiam cada um para o seu rumo.

Saiu para a rua confiante, com os seus sapatos de salto vermelho-cereja e uma saia comprida de retalhos coloridos que lhe davam um ar ligeiramente fora do habitual. Entrou no carro, onde o rádio anunciava as temperaturas para o dia, e no meio do trânsito foi serpenteando pela cidade como todas as manhãs. Chegada ao alto da Calçada avistou o Tejo e piscou-lhe o olho, tornando-o cúmplice da sua aventura.

Chegou à sua pequena loja, quase tão estreita como a própria porta quando, ainda tirava os vasos floridos para o expositor e já o cheiro dos pasteis de Belém a chamavam lhe desviavam a atenção da carrinha que todos os dias trazia as flores fresquinhas, ainda por abrir. 

Arrumado todo o expositor, a loja ficava tão colorida como a sua saia, com um cheirinho a França. Fazia lembrar uma daquelas floristas onde os galãs do cinema antigo compravam uma rosa para oferecer à sua amada.

Foi então que ela decidiu cumprir o que se tinha prometido a si própria, ser-se, sentir-se. E, do nada (ou talvez não) começou a cantar a Mouraria. Velha paixão aquela pelo fado, quando era miúda tinha mesmo chegado a cantar em tabernas, mas depois... os miúdos... e os graúdos, que às vezes são muito piores... os dinheiros... enfim, a vida. Hoje não! Hoje iria cantar "até que a voz lhe doesse"!

De mão na anca, de cesto na cabeça, de braço dado com os turistas, de xaile ao ombro, até acompanhada por um grupo de peruanos que por ali andava a tocar em troco dumas moedas. Foi um dia de emoções há muito esquecidas, fechadas na caixa dos recortes de vidas passadas a que dificilmente voltamos.

O arrumar dos vasos e dos baldes com flores trouxe um peso soturno, uma amargura, um nevoeiro. Fechou a porta da pequena loja e sentindo-se completamente cinzenta, entre tantos carros que voltavam para casa, serpenteou pela cidade. Antes de sair do carro deixou-se ficar uns instantes como que a antever a noite para, quem sabe, ganhar coragem. Novamente os filhos, os banhos, os pijamas, as horas, os jantares, as dúvidas das matérias, as horas e o deitar, sempre fora de... horas.

Abriu a porta do carro e viu o seu sapato de salto vermelho-cereja. Sorriu.

Entrou em casa cantarolando e gritando ordens para um lado e para o outro. Os banhos primeiro, as dúvidas a seguir, e depois... um jantar à luz da vela com toalha de pano em xadrez vermelho e branco. Ah! e uma artista convidada!

O deitar?... Bem, esse seria... fora d'horas, como sempre!

Liliana