quinta-feira, outubro 11, 2012

Quem dorme comigo Alain?

Enrolada na cama desfeita, foi-se soltando do manto que os cobriu durante a lua. Os ponteiros do relógio da torre da igreja em frente gritavam-lhe aos ouvidos que as horas e os minutos esperavam por aquele movimento último que ela tanto adiava.

Estava na hora. Não podia mais fingir que não via as sombras na parede do quarto reflectir a vida. Nem virar a cara para o lado e fazer de conta que não vira o que estava mesmo à sua frente. Nem mesmo imaginar uma narrativa com que se enganava enquanto a chuva na rua batia nos vidros dos carros e corria pela calçada. 

Lá fora a cidade resmungava com parar súbito das horas. O ruído entrava pela janela do quarto e ecoava em todos os móveis por onde passava até acabar deitado, na cama desfeita com lençóis desarrumados.

Não o queria acordar, por isso levantou a perna muito devagar, e sentiu um arrepio a percorrer todo o corpo ao pousar, lentamente, o pé no chão. Era o frio da manhã e das horas apressadas que a obrigavam a levantar-se e sair da cama desfeita onde o manto os cobrira durante a lua. Mas estava na hora. E ela, por mais que se quisesse enganar, sabia disso.

Sentou-se na cama, nua com a pele arrepiada e os ouvidos atordoados pelo barulho dos carros e os gritos dos ponteiros do relógio da igreja em frente. Levantou-se e evitou o espelho, debruado a preto, que geralmente lhe mostrava imagens que não queria ver. Aproximou-se da janela, por trás da cortina bege, e disse aos ponteiros que parassem de gritar e aos carros que recomeçassem a andar e até à chuva que deixasse de cair. Estava na hora dela, era certo, mas a ele queria deixar dormir.

Apanhou as roupas espalhadas pelo chão, guardou as palavras, dobrou os sentimentos e aconchegou os movimentos, sem fazer barulho quase nenhum, e guardou tudo em boiões coloridos com tampas largas de cortiça, que depois pousou ordenadamente em cima da cómoda por baixo do espelho, o que a obrigou a alguns números de ginástica para não se ver reflectida na superfície prateada.

Depois foi à casa de banho, tomou duche, lavou os dentes, penteou os cabelos curtos e loiros, voltou ao quarto onde tirou uma blusa verde e umas calças pretas, depois um vestido cinzento, depois uma blusa branca e umas calças de ganga e por fim uma saia rodada cinza e uma blusa rosa.

Estava pronta. Pronta para sair, depois daquela lua com a cama desfeita e o manto que os cobriu, abafou as palavras, aqueceu os sentimentos e ocultou os movimentos. Ela sairia, mas ele ficaria, descansado em cima da cama até que a brisa do mar o viesse acordar.

Aproximou-se de mansinho à cama, sentou-se na beira onde os lençóis se enrolavam. Procurou o corpo dele para se despedir apenas com um breve um olhar. O manto e o lençol de cima estavam embrulhados num laço de presente mal feito, e o lençol de baixo estava solto com uma das pontas caída até ao chão desde o cimo da cama sem cabeceira. 

O colchão estava frio e não havia roupas no chão. Lá fora os ponteiros do relógio da torre da igreja em frente mantiveram o compasso e a cidade continuou no seu ritmo. Estava na hora dela e ela sabia-o. Ele saíra há muito.

Liliana




Quem dorme à noite comigo?
É meu segredo, é meu segredo!
Mas se insistirem, desdigo.
O medo mora comigo,
Mas só o medo, mas só o medo!

E cedo, porque me embala
Num vaivém de solidão,
É com silêncio que fala,
Com voz de móvel que estala
E nos perturba a razão.

Gritar? Quem pode salvar-me
Do que está dentro de mim?
Gostava até de matar-me.
Mas eu sei que ele há-de esperar-me
Ao pé da ponte do fim.

Medo
Alain Oulman / Reinaldo Ferreira