Apareceu ao fundo da rua, com
um sorriso enorme de criança que acabou de ganhar um chocolate. "Aqui
estou eu!", disse ele feliz. E estava mesmo...
A imagem era, no mínimo, surreal. Vinha a pé pelo meio da estrada, trazia com ele duas malas de pele castanha já gastas, tão cheias que uma quase se abria e a outra trazia de fora uma manga de camisa branca com riscas azuis. Um malote verde à tira-colo, uma mochila grande às costas, daquelas de campismo com a tenda enrolada por baixo e uma caçarola pendurada nos fechos de cima, uma mala de transportar animais com um gato que, a medo, espreitava pela rede, e um periquito ao ombro.
"Aqui estás tu, com tudo o que és..." pensei eu. Tudo o que, ao longo da vida, foste recolhendo e apanhando, o que te foi marcando, o que não conseguiste soltar, o que te pesa nos ombros à noite quando, às voltas na cama, não consegues dormir, o que te arrependes e o que tens saudades.
"(...)
A imagem era, no mínimo, surreal. Vinha a pé pelo meio da estrada, trazia com ele duas malas de pele castanha já gastas, tão cheias que uma quase se abria e a outra trazia de fora uma manga de camisa branca com riscas azuis. Um malote verde à tira-colo, uma mochila grande às costas, daquelas de campismo com a tenda enrolada por baixo e uma caçarola pendurada nos fechos de cima, uma mala de transportar animais com um gato que, a medo, espreitava pela rede, e um periquito ao ombro.
"Aqui estás tu, com tudo o que és..." pensei eu. Tudo o que, ao longo da vida, foste recolhendo e apanhando, o que te foi marcando, o que não conseguiste soltar, o que te pesa nos ombros à noite quando, às voltas na cama, não consegues dormir, o que te arrependes e o que tens saudades.
Ele
avançava devagar, cansado do peso e da viagem. Era fim de tarde e o Sol,
que brilhava baixinho, alongava-lhe a sombra da bagagem que chegava
muito antes dele. Tentei dizer-lhe que largasse algum peso. Estranhou a
sugestão como se viesse de mãos a abanar e não tivesse nada para largar.
Entrou
em casa com dificuldade, lutando com as malas de pele e a mochila que
lhe dificultavam a passagem. No meio daquela confusão, o
periquito esvoaçava assustado e o gato, cuja mala acabou por se abriu ao
bater na porta, fugiu assanhado. E eu acabei a correr pela estrada fora
para o apanhar.
Quando
voltei com o gato nos braços ele já estava instalado, sentado no sofá
grande à frente da televisão, com o comando na mão e o mesmo sorriso
alegre de criança. Espalhados um pouco por toda a sala, peças de roupa,
bugigangas e papeis soltos saídos de uma das malas castanhas. Por muito
que tentasse não consegui chegar-me a ele, muito menos sentar-me ao seu
lado. O sofá estava completamente ocupado pelas bagagens que trouxera, e
eu estava a mais naquela fotografia.
Abri a
janela ao periquito e soltei o gato, tentei encaixar as malas, o malote e
a mochila na dispensa, mas as tralhas pareciam ter vontade própria e
não deixavam a porta fechar. Cheguei-me a ele devagar e perguntei o
porquê de tanto passado a invadir um momento que devia ser só nosso,
feito de futuro e esperança. "Eu estou aqui tal como sou, nada mais e
nada menos" disse ele, e olhou-me com o sobrolho franzido, como se eu
falasse chinês. "Tens a certeza?" perguntei de mansinho, quase em
surdina. Afastei-me e percebi que ele não sabia o peso que trazia. Tudo aquilo vinha com ele há tanto tempo que ele já não se
apercebia de que o acompanhava.
Peguei-lhe
na mão e chamei o gato que saltitava em cima da cama, atrás do
periquito. Depois levei-o até à dispensa, onde as tralhas lutavam contra a
porta. Pelo chão do corredor, desordenadamente, espalharam-se roupas
usadas, papeis amachucados e fotos antigas. Pasmado, encostado à parede,
ele olhava aquele desfile do seu passado, enquanto os bons e os maus
momentos, as dores e a alegrias invadiam um espaço tão grande que não me
deixavam sequer chegar-lhe. Quanto mais tentava aproximar-me, mais
longe me encontrava. Um mar de antigas memórias separava-nos
empurrando-me para longe, longe dele.
Saí para
lhe dar espaço, para não me sentir estranha numa vida da qual, afinal,
eu não fizera parte. Saí mas voltei, mais tarde, depois dos ponteiros do
relógio me confidenciarem que era o momento certo.
Entrei devagar,
receosa do gato, do periquito que esvoaçava, dos papeis, das malas e
malotes... Entrei mas não vi os bichos, nem as tralhas, nem as malas. Na
sala, no sofá grande à frente da televisão, sozinho, estava ele.
Olhou-me demoradamente e tentei entender no seu olhar o que se seguiria.
Nunca
mais vi as malas, o malote ou a mochila de campismo. Na verdade, não
tenho a certeza que o gato se tenha ido verdadeiramente embora, às vezes
parece-me ouvi-lo miar, e podia jurar que no outro dia vi um periquito a
tentar entrar pela janela do quarto. Mas, poderei eu recriminá-lo por isso?
Afinal, quem não guarda consigo imagens ou mesmo marcas do caminho que
atravessou...
Liliana Lima
02-Abril-2009
02-Abril-2009
"(...)
Eu não tenho a certeza
De morrer ou de nascer
De morrer ou de nascer
Sempre que o amor vier
Brilhante natureza
Fecundando matagais assim
Vira vento, vira tempo contra mim
É tão bom ter a certeza
Entre o ser e o acontecer
Mas mentir-te meu irmão
não o farei não
(...)
(...)
Aqui vou eu
Com o que sou
Com o que é meu
Tal como estou
É neste chão
Que eu assento os pés
E é por seres quem és
Que eu assim me dou
(...)"
"Eu não tenho a certeza" de José Mário Branco
Aqui: http://www.youtube.com/watch?v=s_bYzofv3yw&feature=colike na voz de Shila