Pensavas
que era eu aquela com quem gritaste e gesticulaste e mal disseste e
agrediste e mal trataste? Ahh, quão enganado andas tu!
Eu
não era aquela. Eu nem estava, estive ou estou lá. Ela, a tal que
te olhou com olhos tristes (erro crasso,
estás a anos luz) e ainda tentou chegar a ti essa, coitada, como o pinguim do livro que já contei
vezes e vezes sem conta em escolas e escolas e bibliotecas e feiras cheias de
gente, essa ficou completamente desfeita!
Mas eu não. Eu não estive lá, nem por lá passei. Eu estou aqui inteirinha a
olhar para o pinguim/menina desfeita por todo o mundo. E, claro, já sei
que sou eu quem vai palmilhar as estradas e os caminhos e os mares e os
céus até a reconstruir de novo - a menina/pinguim a quem tu gritaste.
Irei, como sempre fui. Com carinho, com paciência, com "uma linha feita
de amor e uma agulha feita de perdão" recolher peça a peça e depois
coser a boneca que se endireitará novamente, vestida de pinguim.
Ah!
Pensavas que era eu! Mas eu há muito que aprendi a estar onde não
estou, a ser não o que sou. Não, não era comigo que gritavas,
gesticulavas e magoavas. Tudo isso era contigo e com a menina/pinguim (a que tu imaginas ser eu), num mundo onde eu não entro e que não me faz sentido. Aliás, acho que aí desse lado do véu que divide os nossos mundos apareço pintada, maquilhada e mascarada (de pinguim).
As
flores acompanharam a minha surdez, as árvores ajudaram à minha
indiferença e até o vento me empurrou para continuar a andar, subindo a rua.
Deixei lá a menina, aquela que se desfaz com os gritos, mas sei que a
consigo consertar - consigo sempre. É que essa, por mais que eu tente,
não se consegue afastar sem carregar o peso insuportável de culpas,
dúvidas, pena, tristezas.... E por isso, lá fica, ouvindo os gritos que
a agridem e, por fim, a deixam completamente desfeita...
Parto
esta noite, logo a seguir ao jantar, levo a linha e a agulha e um
cobertor para a embrulhar. Não sei quando volto, posso demorar, mas no
fim voltarei reconstruida.
Liliana
10-Mai-2010
"Hoje de manhã, a minha mãe gritou comigo, e eu fiquei desfeito.
A minha cabeça voou para junto das estrelas.
O meu corpo perdeu-se por entre as ondas do mar (...) "
A minha cabeça voou para junto das estrelas.
O meu corpo perdeu-se por entre as ondas do mar (...) "
"Quando a mãe grita"
Jutta Bauer