quinta-feira, maio 24, 2012

Piano-navio

Hoje não quero escrever sobre mim, que nada em mim vale a pena espalhar ao vento.

Quero antes falar das notas que se soltam, livres, de cada sala desta escola com corredores frios e cheiro a acabado de encerar do chão de madeira gasta.

Quero antes dizer das crianças que entram e saem ao bater desta porta pesada que acorda os pianos e sobressalta as vozes que aquecem ao fundo.

Quero antes contar de ti, criança nascida de mim, que cresces e brincas e corres e, hoje, tocas por ti.

Quero antes dizer do Sol que espera lá fora desta espera interrompida por escalas de sopros e cordas.

Ainda ontem era filha, empinada num palco feito de mesas em ensaios e tremeliques ansiosos.

Ainda ontem te interrogava e te provocava à procura das fronteiras e limites de um mundo ainda tão pequeno e, no entanto, tão vago.

E hoje as cordas que gemem ao roçar dos arcos e, ao fundo do corredor de tectos altos, as teclas, as tuas, tremidas, tocadas a medo e ainda sem ritmo dentro dessa sala com uma janela redonda que me leva para um navio no embalo do mar.

E hoje o nervoso miudinho, agora por ti, e os minutos que se atrasam, a música que ensaiaste a dançar no tecto, e o aproximar da audição, a pauta repetida a ecoar pelo corredor, e o sorriso da professora a entrar contigo na sala, a hesitação das teclas em cantar as notas certas, e o final em que te demoras.

E hoje a confiança no olhar para te acalmar, a serenidade do beijo para te animar, o abraço, que queria eterno, antes de ires, de entrares na sala/navio e a medo pressionares as teclas e tocares essa pauta tantas vezes ensaiada em casa, e me deixares à espera no corredor com cheiro a cera, nervosa com a audição, agora por ti.

Hoje não quero escrever sobre mim, se bem que escrever-te seja sempre, de alguma forma, escrever de mim.

Liliana