segunda-feira, abril 23, 2012

Mar sonhado

Espreito-me por baixo dos medos que me assaltam os sonhos nas noites de lua nova e escurecem as ruas e apagam as sombras. Levanto a cabeça e vejo o sol que brilha naquele horizonte onde, ainda ontem, me via em contra-luz.

Estendo a mão para proteger os olhos da claridade e os fios do sorriso sobem com ela. Quanto mais alto a levanto, mais a minha expressão se abre... Testo os movimentos, no meio de fios que me prendem as pernas e levantam o corpo, e aprendo a mover-me com a maré.

Um final de tarde dourado levanta-se ao mesmo tempo que eu e procuramos o ritmo comum nesta estranha dança que iniciamos. 

Pergunto às ondas porque devolvem à praia, desfigurado, aquilo que antes levaram, perfeito, num rodopio de espuma. Porque engolem nas suas águas revoltas retratos e pinturas que depois, secam desfigurados na areia como um desfile de roupa velha que já ninguém quer.

O mar responde-me num ondular brilhante que o seu trabalho é lavar a praia de cada um de nós. Leva o que adornamos, embelezamos, retocamos ou até remodelamos, e devolve apenas e só aquilo que é verdadeiro e real.

- Levas-me os sonhos... "apenas as ilusões".
- Roubas-me as fantasias... "somente as mágoas".
- Magoas-me... "tu é que te enganas, eu só te mostro a verdade vista com olhos lavados".

Esperneio e grito a um sol que se esconde. E o mar... olha-me, sereno e liso como um espelho, e devolve-me a imagem duma marioneta, refém da minha zanga. Sento-me à beira-mar e deixo que se inundam os olhos.

Apanho as memórias espalhadas pela areia e guardo-as no coração. 

A noite está a nascer e com ela a lua que me fala de mundos que nunca vi. Abeiro-me dum velho barco e deixo que o vento me embale na esperança dum novo olhar. Os remos são pesados e a noite arrefece. Deito-me na madeira e sinto o luar que me beija e embala os sonhos. 

Acordo com uma melodia suave que vem do areal, espreito a medo e vejo ao fundo um corpo recortado na sombra da areia. Aproximo-me da praia e estendo a mão. Retoco os seus traços, amacio-lhe o canto e adoço os seus gestos. Uma nova dança começa.

Até que um dia o mar me invada os sonhos...

Liliana


"O mar azul e branco e as luzidias
Pedras – O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida.
"

Mar-Poesia, 2001 de Sophia M.B. Andresen