domingo, agosto 07, 2011

De que tens medo, Sérgio?!

Tenho medo... sobretudo do escuro, onde a vista se perde e os sentidos, em alerta, se confundem entre o querer e o perder. Por isso acendo os candeeiros da rua, mesmo quando o nevoeiro me impede de ver.

Tenho medo... sobretudo do silêncio que me imponho na procura duma janela que, penso, só eu poderei encontrar no isolamento total. E no entanto, tenho medo... do vazio da sala onde, sozinha, me enrolo sobre os joelhos e me embalo, para não ter... medo.

Tenho medo... dos não ditos e das omissões, que se misturam com a história e fazem nascer mil contos, tantas vezes criados e regados apenas com a minha imaginação.

Tenho medo... sobretudo de paralisar, por medo. Pôr o pé no travão, engatar a marcha-atrás, parar mesmo antes de começar a andar. Começo a viagem tão concentrada na forma certa de chegar à meta que quantas vezes, com medo de falhar, acabo por me perder no caminho.

Tenho medo... dos novelos que se desenrolam e se entrelaçam pelo chão, pelas minhas mãos, pelo meu corpo, numa mistura de cores onde me envolvo e me prendo mesmo antes de conseguir enfiar a linha na agulha para bordar o arco-íris.

Sim, tenho medos... E, nos dias bons, tenho muito medo, sobretudo quando não sinto... medo.

Liliana



"Eh! Meu irmão, o que é que tu tens
que tremes como um chouriço?
Eh, meu irmão que é que tens,
parece que viste bicho!
Um bicho vi, sim senhor
enroscou-se a mim e pediu-me amor
tinha corpo de mulher
cabelo encaracolado
beijou-me, apagou as luzes
e eu então gritei!
Ai, um bicho!

Eh meu irmão, que é que tens
estás branco que nem um nabo!
Eh, meu irmão, que é que tens,
parece que viste o diabo!
Vi mesmo, bateu à porta
disse que o povo estava na rua
e que a rua era do povo
que é p’ra quem ela foi feita
e o povo somos nós todos
e eu, então gritei:
Ai o diabo!

Eh, meu irmão, que é que tu tens
estás branco como o jasmim!
Eh, meu irmão que é que tu tens
o que é que te pôs assim!
Foi o medo da água fria
o medo da vida, o medo da morte
o medo da lua cheia
o medo da lua nova
o medo até de ter medo
que me faz gritar
Ai, que medo!

E assim com medo de tudo
perdeu meu irmão a vida
e assim com medo de tudo
viveu-a e não foi vivida
meteram-no num caixão
às duas por três, num dia de Verão
desceram-no p’ra uma cova
deitaram terra por cima
espetaram-lhe uma cruz
ita missa est
Amen"

"Eh! Meu irmão" do Sérgio Godinho
(Pré-Histórias)