sexta-feira, maio 27, 2011

Dorme a cidade, Chico?

A cidade dorme. As janelas fecham-se como pálpebras cansadas depois de mais um dia de correria e burburinho. As casas, paradas e apagadas, respiram tranquilas na calma dum sono profundo.

Ela senta-se na varanda e acende um cigarro, deixou de fumar há mais de dez anos mas aquela noite pede algo que a reconforte e nada mais há para além dum copo mal cheio e dois cubos de gelo. O fumo sobe sem esforço no ar estanque da noite como quem vai até à lua e, lá em cima, vê toda a vida com a distância necessária para reconhecer os erros e os caminhos certos. Pudesse ela subir com ele...

O silêncio perturbador duma cidade inteira de olhos fechados assalta-a como um fantasma teimoso que espreita por entre os carros estacionados e os passeios vazios. Nunca gostou do silêncio, cresceu no meio dele e da solidão e sabe que, para ela, trará sempre um presente amargo. Encolhe-se no cadeirão e procura a manta como um bebé que se aninha no colo da mãe. "Está tudo bem", diz baixinho para se convencer a si própria, enquanto o cigarro a reconforta pela última vez antes de se apagar na sua insignificância.

Olha para o quarto, ele dorme com a cidade, calmo e tranquilo, tão longe dos seus silêncios e das suas solidões e dos seus fantasmas e dos seus medos. Pode quase chegar-lhe com uma mão ou acordá-lo com uma palavra e, no entanto, um imenso mar de desconhecimento os separa. Que faz ela ali?!

Pega no copo e roda-o fazendo os gelos bater entre si e cantar um baixíssimo tilintar que ecoa pelas ruas da cidade. Assusta-se "vou acordar toda a gente", pensa. Mas apenas um suspiro mais fundo se ouve e até o rio se mantém imperturbável, espelho calmo da sua solidão.

Daquela varanda pode sentir todos os sonhos que são sonhados. Pega nos mais risonhos e experimenta-os, como quem veste um vestido na loja, procurando um pouco de calma. Alguns de tão justos não a deixam respirar, outros são tão grandes e abrangentes que lhe escorregam pelos ombros e acabam caídos no chão e amassados num monte. Não, os sonhos alheios nada lhe dizem. Tem de ser ela própria a descobrir o seu sonho calmo e alegre. Mas o medo do silêncio, os fantasmas teimosos que a vigiam... não tem coragem de fechar os olhos e deixar-se adormecer naquele embalo ondulante da cidade. Não ela, que nunca se achou capaz de deixar fechar as janelas como pálpebras cansadas dos dias que correm em horas sobressaltadas.

O céu ainda não confessa o nascer do sol e já o chilrear tímido dos pássaros o denuncia. Apenas uma pequena claridade ao fundo, no seu lado direito, atrás das casas adormecidas dá a perceber que, como sempre, o sol voltará a nascer nesta madrugada.

Enquanto as janelas, muito devagar, se começam a abrir, e a cidade se espreguiça e pensa em acordar, ela pousa o copo e, inspirando fundo, sente o silêncio e os fantasmas e o vazio e o medo desvanecer.

No cadeirão da varanda embrulhada na manta permite-se, por fim, fechar os olhos ao mesmo tempo que sol se levanta e a cidade acorda.



Liliana


"Dorme a cidade
Resta um coração
Misterioso
Faz uma canção
Soletra um verso
Lá na melodia
Singelamente
Dolorosamente
Doce a música
Silenciosa
Larga o meu peito
Solta-se no espaço
Faz-se certeza
Minha canção
Réstia de luz onde
Dorme o meu irmão"





"Minha canção" de Chico Buarque
(LP Saltimbancos de 1977 - adaptação dos Músicos de Bremen)