sexta-feira, fevereiro 25, 2011

Sou feita de várias palavras, António...


Sou feita de várias matérias, compostos químicos que se degladiam pela liderança. Se choro em silêncio é porque sei que ninguém virá aconchegar-me os cobertores de lágrimas numa cama de esperança.
E por isso corro. Corro para te secar as lágrimas que choras nos dias de nevoeiro.
E por isso velo pelo teu sono, para que sejas sempre capaz de imaginar um admirável mundo diferente.
E por isso te acolho antes que chores, para que durmas tranquilo.
E por isso, também a ti, te pinto o céu com arcos e te conto histórias de vidas coloridas.

E, talvez por isso, me sinto assim, vaga, estranha numa casa de família, abandonada até por mim.

Sou feita de muitas estrelas, constelações e luas que giram em redor de um planeta talvez longe da Terra. Se canto durante o dia é porque à noite me vejo nua debaixo do luar procurando o meu lugar.
E por isso te conforto, para que te sintas em casa em mim.
E por isso te pergunto, te interrogo, te pressiono, para que não percas o impulso vital de agir.
E por isso te acolho nas birras, nas zangas, mesmo até quando me cansas, porque te sei só e te quero embalar.
E por isso, sim, forço-me a regar as flores para que não morram e continues a ter primavera no inverno.

E, talvez por isso, tantas vezes me veja correndo atrás de ti e de ti, sem perceber que o faço por mim.

Sou feita assim, de palavras, gritos que silencio e depois canto em sorrisos, esforçando-me por distribuir o seu fugaz brilho, não para recolher os frutos, mas para não deixar apagar o fogo que crepita no mais fundo de ti e te faz acreditar sorrindo. E então, a parte mais colorida de mim possa surgir alegre, real e solar, sem truques nem feitiços, apenas eu, feita de várias matérias....

Liliana


"As palavras mais nuas
as mais tristes.
As palavras mais pobres
as que vejo
sangrando na sombra e nos meus olhos.

Que alegria elas sonham, que outro dia,
para que olhos brilham?
Procurei sempre um lugar
onde não respondessem,
onde as bocas falassem num murmúrio
quase feliz,
as palavras nuas que o silêncio veste.
(...)"

"Poema" de António Ramos Rosa