segunda-feira, fevereiro 28, 2011

Ajuda-me a abrir o armário, António...

Aquele armário branco, com portas de vidro recortado em madeira e gavetas de vários tamanhos, é onde guardo os tesouros e os medos. Cada um bem embrulhado numa rede fina de tempo que se vai tecendo conformegiram os ponteiros do relógio da torre da estação.

Nas gavetas estão pequenas lembranças, sentimentos arrebatadores, brilhantes manhãs em que o sol esteve mais forte, noites estreladas de verão, tardes de chuva com chá e uma manta, um sorriso, um abraço, um olhar, uma mão que se estende, uma criança que se mexe dentro de nós, um nevão de folhas amarelas, palavras que se juntam, conjugam e rimam.

Nas portas de vidro recortado em madeira pintada de branco, dentro de dossiers fechados, numerados e catalogados, estão as mágoas as lágrimas que não quero lembrar, as feridas saradas e as que ainda sangram, os passos que não fui capaz de dar e os que dei a mais, dossiers fechados a que já não quero voltar.

Aquele armário branco é a minha história, contada em parcelas, que se interligam por fios condutores - pequenas estradas amarelas que se enrolam em volta dos anos que passam a um ritmo tão inconstante como o passar do tempo. Os tempos demorados que nos fazem esperar eternidades pelo final da manhã tecem fios finos de um amarelo claro, quase branco. Os tempos irrequietos, que nos fogem por entre os dedos e parecem esfumar-se em poucos segundos fiam novelos grossos amarelo-torrado, quase laranja.

Abro uma gaveta de baixo, pequena, quase imperceptível. Os fios amarelo-torrado amontoam-se à volta dela como um casulo que, cuidadosamente, desenrolo. Num piscar de olhos um abraço em silêncio os teus olhos o teu cheiro... voando como borboletas coloridas por entre outros dias e outras horas. Os ponteiros do relógio da torre da estação avançam e logo o silêncio, este baço, cinzento, povoado pelos barulhos indiferentes duma cidade em movimento, me levam de volta ao meu armário branco onde embalo de novo a gaveta nos fios do tempo e a recoloco no seu lugar, para outro dia reviver...

Liliana


"Dou-te um nome de água
para que cresças no silêncio.

Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.

Invento do meu nada
esta pergunta
(Nesta hora, aqui.)

Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.

Silêncio e sol - verdade,
respiração apenas.

Amor, sei que vives
num breve país.

Estou vivo e escrevo sol"


"Teu corpo principia" de António Ramos Rosa

in "Matéria de Amor"