sábado, janeiro 29, 2011

Vem devagar, Sérgio...

Obrigo o tempo a parar e recolho-me no fundo da caixa onde guardo as pérolas do mar futuro que um dia, sem aviso nem fumo nem carta nem anúncio prévio, me trouxeste num cesto de sol.

Aproveito as entre-linhas do relógio para, nesta agitação mansa neste caos calmo nesta noite sonhada, deixar entrar o rio com a lua ondulada e a cidade, ao contrário, que velam pelo silêncio que, letra-a-letra, me ensinas.

Deito a ampulheta de lado e, na areia molhada do tempo parado, visto-me de mil cores para acalmar o futuro que teima em saltar em todas as direcções, fazendo-me tropeçar num presente que quero apressar.

Os segundos abrandam o ritmo e os ponteiros aceitam o convite para dançar com os sonhos que correm, esses sim, livres das horas e dos dias do mundo real. Saio para o meu sonho e, sem pressa deixo-me levar, nesta onda com cheiro e sabor a sorrisos.

Liliana






"Quando/ tu me vires no futebol/
estarei no campo/ cabeça ao sol
a avançar pé ante pé/ para uma bola que está/ à espera dum pontapé
à espera dum penalty/ que eu vou transformar para ti
eu vou/ atirar para ganhar
vou rematar/ e o golo que eu fizer/
ficará sempre na rede/ a libertar-nos da sede
não me olhes só da bancada lateral/ desce-me essa escada e vem deitar-te na grama
vem falar comigo como gente que se ama/ e até não se poder mais/ vamos jogar

Quando/ tu me vires no music-hall
estarei no palco/ cabeça ao sol/ ao sol da noite das luzes/ à espera dum outro sol
e que os teus olhos os uses/ como quem usa um farol
não me olhes só dessa frisa lateral/ desce pela cortina e acompanha-me em cena
vamos dar à perna como gente que se ama/ e até não se poder mais/ vamos bailar

Quando/ tu me vires na televisão
estarei no écran/ pés assentes no chão
a fazer publicidade/ mas desta vez da verdade/ mas desta vez da alegria
de duas mãos agarradas/ mão a mão no dia a dia
não me olhes só desse maple estofado/ desce pela antena e vem comigo ao programa
vem falar à gente como gente que se ama/ e até não se poder mais/ vamos cantar

E quando/ à minha casa fores dar
vem devagar/ e apaga-me a luz/ que a luz destoutra ribalta
às vezes não me seduz/ às vezes não me faz falta
às vezes não me seduz/ às vezes não me faz falta"

"Espectáculo" de Sérgio Godinho