domingo, outubro 24, 2010

Confias em mim, Carlos?!

Disse mesmo o que penso, ou será que fui eu que me enganei e conjuguei as palavras duma forma absurda? Não procuro essa resposta, terá sido a minha pergunta mal elaborada?
Recomeço.

Espere. Não me olhe assim, não me quero reflectida nesse olhar. Há aqui um engano, não o olhei desse prisma, nem tenciono vê-lo aí. Não me está a entender, devo-me ter explicado mal, peço desculpa.
Recomeço.

Não entendo esse sorriso, não é de alegria nem de amizade... Estou engana. Só posso. Conheço-o há tantos anos...
Recomeço mais uma vez, baralhada.

Não quero ouvir essas palavras que ecoam a azedo, e me ferem tanto como o olhar que choca com o meu e me faz embater na mão que está pousada no meu ombro. Não conjugo os verbos, nem equaciono as consequências. Afasto-me apenas, sem a coragem de me debater, impor ou sequer reconhecer que sei.

Engano-me.
Afasto-me, mas mais minuto menos minuto tudo há-de cair em cima de mim, como uma chuva repentina. Afasto-me para fugir, mas na verdade trago comigo as palavras, os olhares, as insinuações coladas ao corpo. Apago as memórias tapando com a mesma areia que atiro aos meus olhos.

Engano-me a mim própria.
Recomeço sem ter, verdadeiramente, acabado. Avanço com a urgência de não ficar aqui, abandonada neste limbo.

Liliana




"Todos nasceram velhos — desconfio.
Em casas mais velhas que a velhice,
em ruas que existiram sempre — sempre
assim como estão hoje
e não deixarão nunca de estar:
soturnas e paradas e indeléveis
mesmo no desmoronar do Juízo Final.
Os mais velhos têm 100, 200 anos
e lá se perde a conta.
Os mais novos dos novos,
não menos de 50 — enorm'idade.
Nenhum olha para mim.
A velhice o proíbe. Quem autorizou
existirem meninos neste largo municipal?
Quem infrigiu a lei da eternidade
que não permite recomeçar a vida?
Ignoram-me. Não sou. Tenho vontade
de ser também um velho desde sempre.
Assim conversarão
comigo sobre coisas
seladas em cofre de subentendidos
a conversa infindável de monossílabos, resmungos,
tosse conclusiva.
Nem me vêem passar. Não me dão confiança.
Confiança! Confiança!
Dádiva impensável
nos semblantes fechados,
nos felpudos redingotes,
nos chapéus autoritários,
nas barbas de milénios.
Sigo, seco e só, atravessando
a floresta de velhos."

"Os velhos" de Carlos Drummond de Andrade
in 'Boitempo'