domingo, julho 04, 2010

Diz-me o que vês no espelho, Chico?!

Diz-me espelho, diz-me o que vês do lado de cá das águas?
Dias há em que vês a sombra de algo que está para ser ou que já foi um dia, uma sombra sem corpo, sem forma certa, mas que caminha como quem busca o seu Peter Pan.
Nas noites escuras podias jurar que vês brilhar uma luz, pequenina, que te embala e te inspira, como um farol longínquo que guia os barcos perdidos no oceano até bom porto, riscando o caminho seguro pelas ondas e marés.
Nas tardes frias de inverno ofuscam-se as águas e tudo fica baço, pouco definido, inconstante, queres ver quem lá está mas os olhos estão vazios, sem voz e, por isso nada vês neles que valha a pena espelhar.
Mas quando o Sol se levanta nas planícies alentejanas, descobrindo o manto da noite e deixando a nu a enorme linha do horizonte, a luz que te enche é uma força que se faz palavra e intenção e emoção e gesto num só sorriso.

Diz-me espelho, diz-me o que vês do lado de cá das águas?
Verás o castelo de areia em que me refugio durante as tempestades?
E a muralha de dominó que vou erguendo em volta dos meus sonhos para que não caiam das nuvens e se estatelem no chão, também vês?
E estas tintas com que me pinto para cumprir o papel certo, sem sair do guião?
Verás ainda, depois de tudo isto, os olhos que te olham esperando resposta?

Diz-me espelho, diz-me se sou eu quem vês quando espreito do lado de cá das águas?

Liliana


"Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz

Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Olha
Será que ela é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Sim, me leva pra sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Aí, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se o arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida"


"Beatriz" de Chico Buarque