terça-feira, junho 29, 2010

Chegaste ao fim ou ao princípio do caminho, José?!


Desceu a rampa convencido de ir dar a um local mágico. Tinha tanta certeza que estava no caminho certo que nem os avisos ou desconfianças ou contratempos o fizeram desistir. Era ali, o lugar dele, finalmente chegaria ao fim da sua caminhada!

Todo o percurso tinha sido, no mínimo, absurdo. O astrolábio avariou-se em plena noite de lua nova deixando-o à deriva durante dias. A bússola caiu no meio dum pântano esverdeado onde até a mochila da roupa se afogou para sempre. Os mapas, que trouxera como último recurso, acabaram em fanicos depois dos cães os confundirem com algo para trincar. Ah! Mas aquela era uma viagem que faria até contra ventos e marés. Afinal, um homem tem o direito de morrer numa poltrona feita propositadamente para si, e ele sabia que era aquele o caminho para ela.

Avançou pelo meio dar árvores até chegar a uma espécie de clareira polvilhada de arbustos selvagens e flores campestres, estava quase a chegar, sentia-o dentro do peito no palpitar acelerado do coração. De repente teve dúvidas, suores frios inundaram-lhe as ideias. E se estivesse errado? Depois de tantos atalhos e desvios, não se teria perdido? Ele queria o fim do caminho, mas não de um qualquer, ele queria encontrar o final da sua estrada. Sentou-se um pouco naquele chão arenoso por onde as formigas (enormes) faziam os seus próprios caminhos por entre ervas e pedras, sem bússolas, nem mapas ou astrolábios elas seguiam, decididas, confiantes, acompanhadas - ao contrário dele é certo, mas há coisas que têm de ser feitas em solidão e uma companhia só teria servido para o atrapalhar, atrasar ou até mesmo desmoralizar.

Não! Chegara até ali sem saber bem como, fizera o seu percurso, aprendera com os erros e arriscara sem medos - porque na verdade este tipo de caminho deve ser feito seguindo os instintos, não os instrumentos ou os julgamentos de outros - e não seria agora que desistiria. Levantou-se, olhou as formigas (agora já tão pequenas) e sorriu, tantos caminhos por desbravar e elas naquela eterna correria... Tinha pena delas, deitou umas migalhas de bolacha que tinha no bolso e afastou-se tentando não ferir nenhuma ao passar.

Encontrou um caminho pintado branco no meio dos arbustos. Ele sempre soubera! Era ali, era aquele o final da linha, lutara para lá chegar e era lá que seria, finalmente, feliz - no fim. Desceu a rampa convencido que ia encontrar um local mágico, o sítio perfeito para poisar, para parar, para acabar. Teria uma poltrona luxuosa à sua espera, feita à sua medida e todo o tempo do mundo para deixar de pensar, de se preocupar, de sofrer, de sentir, de amar, de se magoar, de duvidar, de chorar, de procurar... de viver.

A rampa, feita de ripas de madeira pintadas dum branco que outrora talvez tivesse sido azul, acabava numa falésia com vista para o mar. Havia um banco, também de madeira, meio desfeito virado para aquela imensidão de água que acariciava a areia e brincava com as conchas que rebolavam, para trás e para a frente, distraídas dos medos dos homens. O sol embalado pela brisa da tarde demorava-se, preguiçoso, num beijo ainda tímido no ondular do horizonte.

Estava tonto. Não sabia o que pensar, talvez pelo cheiro forte a maresia, talvez pela beleza do cenário. Perdera-se no caminho?! Aquele não era, com certeza o seu fim. Aliás aquele não era o final de coisa nenhuma, era um início de noite, uma explosão de laranjas e roxos no céu, um banho de vida que revoltava a areia e trazia sempre novas conchas à margem... Perdera-se no caminho?! Mas como? Estava tão certo que era ali que queria chegar.

Sentou-se no banco, as tábuas já gastas e desconjuntadas rangeram com o peso do seu corpo mas mantiveram-se, formando uma espécie de casulo em seu redor. O sol mergulhara já pelo mar e a lua brilhava, cheia, para ele. A toda a volta a vida parecia espicaça-lo, nos besouros que se levantavam com o ar quente da noite, nos pirilampos que esvoaçavam por entre as flores adormecidas, no piar dum cuco ou duma coruja, tudo lhe dizia que aquele não era o fim.

Ali, aquele banco, era exactamente o início. Primeiro da madrugada, lenta e tranquila, depois da manhã, com os pássaros que se alvoraçavam e as gaivotas que voavam a pique para o mar, depois da tarde, com o sol bem alto e quente fazendo a terra endurecer para se proteger e depois, devagar, aquele beijo primeiro tímido depois envolvente e por fim abraço perfeito entre sol e mar que lhe gritavam por todo o céu para se levantar e, mais uma vez, percorrer o caminho - o seu. Caminhar seguindo o instinto e aproveitando cada segundo do percurso, porque todos as as chegadas contêm em si a partida que se seguirá. Para onde? No mínimo até à linha do horizonte...
Liliana

Com "Travessia do deserto" de José Mário Branco no ouvido, (aqui numa Curva de outros tempos)...