terça-feira, junho 08, 2010

Tens um castelo feito colo, Cristina?!

Construí um castelo de cartas no cimo da mais alta montanha da minha auto-estima e, num dia de sol, agarrei numa flor e fui à tua procura por entre os corredores. Um a um entrei nos muitos quartos, salas e divisões que se abriam dentro do castelo com o passar dos anos e, em cada um deles, encontrei um pouco de mim projectado nas paredes de copas, espadas, paus e ouros.

Na sala de jantar, onde os quadros se entortavam conforme o vento, encontrei-te sentado com os cotovelos apoiados na mesa de jantar e um copo, não sei se de vinho não sei de whisky, quase no fim. Rias-te das minhas histórias e cantigas que rodavam pela sala, era a tua menina que dançava e cantava para te ver feliz. Os tectos antigos e trabalhados contavam-me outras histórias de outras mesas, ou da mesma, noutros dias que se multiplicaram e te levaram assim, sentado com os cotovelos apoiados na mesa, olhando o vazio através de mim.

No quarto ao fundo do corredor, uma cama desfeita ainda morna, dizia por entre a Dama de Espadas que saíras mais cedo, ou chegaras mais tarde, mas que não estavas lá. Espreitei pela janela e vi-te do lado de fora, bem longe da montanha onde construíra o meu castelo para um dia ser nosso, mas que afinal nunca passou duma ténue miragem.

Subi as escadas apertadas feitas de Valetes de Copas e cheguei ao andar de cima, onde a luz brilhava e entrava um pouco por todo o lado, invadindo aquela enorme divisão sem paredes nem portas. Estavas no centro e sorrias para mim. Estendias-me a mão com a confiança de quem sabe que o futuro só poderia ser brilhante. Sabias tudo sobre mim e fazias bonecas com a minha cara que me oferecias para me entreter. As cartas deste andar estavam bem assentes, não dançavam com a força dos ventos ou das marés, mas aos poucos senti que o castelo deslizava para outras paisagens. Assustada, abracei-te e já sem medo ergui as paredes e montei as portas até tudo se parecer com a minha ideia de lar.

Um dia descobri um alçapão que dava para um sótão e um terraço com vista para o Tejo. Trepei por monte de bancos e cadeiras empoleiradas e ali fiquei muito tempo, olhando para o meu castelo feito lar numa terra distante de mim. Sentei-me num sofá de Jokers e, olhos nos olhos com o rio, encontrei-me lutando para arrastar o castelo de novo para a montanha mais alta da minha auto-estima. Foi a primeira vez que te vi num canto, quase escondido e sem nada dizer. Confundi-te a princípio, e desci numa correria de cadeiras e bancos instáveis para te encontrar bem no centro do lar onde a luz entrava um pouco por toda a parte e as cartas eram estáveis e tranquilas. Abracei-te como se não houvesse amanhã. Falei, contei-te de mim, dos castelos, das cartas, dos abandonos, das canções, do rio e da minha montanha. Neste andar as minhas palavras esvoaçavam por entre as cartas e o eco baralhava a canção que queria cantar. Não consegui contar-te as histórias que trazia para te dizer, mas demos as mãos e ali ficámos, no andar a que chamámos lar e onde outros risos e brinquedos substituíram as bonecas de pano que antes me davas.

Continuei a subir ao sótão onde, às vezes, te sentia por entre o azul do céu, outras te perdia no meio duma tempestade. Aprendi a reconhecer-te nas meias palavras, no olhar toldado de cansaço ou alegre de criança, numa meia palavra, nas entrelinhas que ousavas dizer ou no silêncio abafado que prolongavas sem aviso prévio. No sótão e no terraço com vista para o Tejo, éramos cúmplices sem abanar o castelo, sem desviar as cartas, sem desmontar os bancos e as cadeiras empoleirados por onde, todos os dias, descia tranquila.

Construí um castelo de cartas no cimo da mais alta montanha da minha auto-estima. Aprendi a não te confundir, a não me baralhar entre corredores, salas, quartos e sótãos. Subo e desço sempre que me apetece e nunca deixei de te ter por cá, nos desencontros, nos abandonos, nas alegrias, nas cumplicidades. Mas é no sótão, ou até no terraço, olhos nos olhos com o rio, que verdadeiramente me encontro e te acolho no meu colo.
Liliana



"Nem todos os sonhos são meus.

Só quando criam braços

e se tornam coração;

só quando deixam no meu colo

o cheiro leve de ser feliz."

"Colo" de Cristina Taveira

in "Agridoce"