segunda-feira, maio 31, 2010

Segredos, leva-os a corrente, Nuno!

Há uma caixa de cartão no sótão da minha avó que outrora guardou chapéus e a nós serviu de caixa-forte aos segredos que eu e a minha prima não ousámos contar nem a nós próprias.

Todas as tardes subíamos as escadas de madeira, mal pintadas e gastas pelos muitos sapatos que por ela passaram, com a pressa de quem não tem tempo a perder porque todo o mundo é descoberta novidade espanto e exaltação. Ao subir, deixávamos do mundo um saco cheio de dúvidas e entrávamos nas certezas dos nossos poucos anos, degrau a degrau encarnávamos o nosso desenho, a nossa história.

Brincávamos com todas as "tralhas" que à minha avó pareciam inúteis e a nós surgiam como mágicas, num cenário protegido pelas telhas que deixavam passar o calor do sol e duas janelas redondas com vista para o céu. Brincávamos com as imagens do que vivíamos, com os sentimentos, com um arco-íris inteiro de novidades que se seguiam dia após dia. E depois, quando nas janelas começáva a espreitar o azul baço do fim de tarde, pegávamos na caixa - a dos chapéus - e contávamos-lhe o indizível, as certezas que no fundo eram um sem fim de dúvidas, as alegrias tão inconstantes como as paixões e desamores, os segredos dos 12 e 10 anos que fechávamos a sete chaves numa caixa de cartão no sótão da minha avó.

O sótão da minha avó já não existe (para a minha avó pelo menos), hoje é um terraço com vista para o Tejo duma família que desconheço. A caixa de cartão, que outrora guardava os nossos segredos em forma de sonhos de encantar perdeu-se, e até os chapéus deixaram de ter lugar na nova casa.

Podia jurar que nos dias de primavera, quando o sol deixa de queimar as telhas e o céu azul claro vai escurecendo ao entrar pelas janelas, dezenas de chapéus boiando pelo rio levam os nossos risos nervosos de meninas contando o indizível dos dias...

Liliana


"Abraça-me a bruma, envolve-me
a névoa, como se amágoa fosse
nenhuma; mas devolvo-as ao rio,
para que as leve, como leve espuma.
(...)
Sinto-me livre, vendo-as partir:
como se elas me deixassem, como se
o rio não tivesse parado de correr.

Peço ao vento que me ajude, soprando
para as afastar, mas elas prendem-se
a mim, serve-lhes o poema de açude."

"Corrente" de Nuno Júdice

in "O breve sentimento do eterno"