segunda-feira, maio 10, 2010

Essa não sou eu, Jutta...



Pensavas que era eu aquela com quem gritaste e gesticulaste e mal disseste e agrediste e mal trataste? Ahh, quão enganado andas tu.

Eu não era aquela. Eu nem lá estava, lá estive ou estou lá. Ela, a tal que te olhou com olhos tristes e ainda tentou chegar a ti (erro crasso, estás a anos luz), essa coitada, como o pinguim do livro que já contei vezes sem conta em escolas e escolas e bibliotecas e feiras cheias de gente, essa ficou completamente desfeita!

Mas não eu. Eu não estive lá, nem por lá passei. Eu estou aqui inteirinha a olhar para o pinguim/menina desfeita por todo o mundo. E, claro, já sei que sou eu quem vai palmilhar as estradas e os caminhos e os mares e os céus até a reconstruir de novo, a menina/pinguim a quem tu gritaste. Irei, como sempre fui. Com carinho, com paciência, com "uma linha feita de amor e uma agulha feita de perdão" recolher peça a peça e depois coser a boneca que se endireitará novamente, vestida de pinguim.

Ah! Pensavas que era eu. Mas eu há muito que aprendi a estar onde não estou, a ser não o que sou. Não, não era comigo que gritavas, gesticulavas e magoavas- Era contigo e com a menina/pinguim que tu imaginas de mim, no mundo onde só tu entras e que só a ti faz sentido. Acho que aí desse lado do véu que divide os nossos mundos apareço pintada, maquilhada e mascarada (de pinguim).

As flores acompanharam a minha surdez, as árvores ajudaram à minha indiferença e até o vento me ajudou a continuar a andar, subindo a rua. Deixei lá a menina, aquela que se desfaz com os gritos, mas sei que a consigo arranjar - consigo sempre. É que essa, por mais que eu tente, não se consegue afastar sem carregar o peso insuportável da culpa, da dúvida, da pena, da tristeza. E por isso, lá fica, ouvindo os gritos que a agridem e, por fim, a deixam completamente desfeita...
Parto esta noite, logo a seguir ao jantar, levo a linha e a agulha e um cobertor para a embrulhar. Não sei quando volto, posso demorar, mas no fim voltarei reconstruida.


Liliana





"Hoje de manhã, a minha mãe gritou comigo, e eu fiquei desfeito.
A minha cabeça voou para junto das estrelas.
O meu corpo perdeu-se por entre as ondas do mar (...) "

"Quando a mãe grita" de Jutta Bauer