segunda-feira, maio 03, 2010

Deixa-me ver o brilho dos teus olhos, Sérgio...

Entro na água com os pés descalços e arrepio-me com o ondular que me gela todo o corpo. Sussurro uma canção antiga, mais velha que o nascer do sol, que varre as memórias e levanta o pó dos sentidos e acende o brilho dos olhos. A ponte balança as ancas acompanhando o ritmo vagaroso da maré que me cumprimenta.

Deixo-me levar novamente pelo azul límpido das águas.

Avanço pelo rio nesta melodia esquecida, avanço sem esforço, leva-me a maré que, aos poucos se levanta em ondas na minha direcção. O vento acompanha a minha canção e enche todo o horizonte com os sentimentos que se soltam de cada palavra cantada, de cada melodia entoada.

Olho para o espelho de água e revejo-me presa num remoinho antigo, passado, abafado pelo pó dos dias, que recomeça a girar à minha volta. Será possível? Pergunto-lhe. Será que a canção, que ficou debaixo, da areia que se eleva e volta a acender o brilho dos olhos? Será o Sol que se atreveu novamente a aquecer o corpo? Será o azul que, como um berço, embala os sentidos e acorda as lembranças?

Deixo de cantar e olho a ponte que se entristece com o meu silêncio. E ali fico parada, muito tempo, olhando o espelho de água como uma projecção de um filme antigo. Vejo-me e revejo o turbulhão de onde, um dia, saíra. Procuro a margem como reforço da minha história e volto a cantar. Mas canto bem alto, fazendo abanar todo leito do rio e aumentar as ondas e rodopiar a ponte. Canto sem medo, porque canto com prazer, sem dor.

E sorrio, mais uma vez, ao azul límpido das águas.

Liliana





"Com um brilhozinho nos olhos
e a saia rodada
escancaraste a porta do bar
trazias o cabelo aos ombros
passeando de cá para lá
como as ondas do mar.
Conheço tão bem esses olhos
e nunca me enganam,
o que é que aconteceu, diz lá
é que hoje fiz um amigo
e coisa mais preciosa
no mundo não há.

Com um brilhozinho nos olhos
metemos o carro
muito à frente, muito à frente dos bois
ou seja, fizemos promessas
trocamos retratos
trocamos projectos os dois
trocamos de roupa, trocamos de corpo,
trocamos de beijos, tão bom, é tão bom
e com um brilhozinho nos olhos
tocamos guitarra
p'lo menos a julgar pelo som

E que é que foi que ele disse?
E que é que foi que ele disse?
Hoje soube-me a pouco.
passa aí mais um bocadinho
que estou quase a ficar louco
Hoje soube-me a tanto
portanto,
Hoje soube-me a pouco

Com um brilhozinho nos olhos
corremos os estores
pusemos a rádio no "on"
acendemos a já costumeira
velinha de igreja
pusemos no "off" o telefone
e olha, não dá p'ra contar
mas sei que tu sabes
daquilo que sabes que eu sei
e com um brilhozinho nos olhos
ficamos parados
depois do que não te contei

Com um brilhozinho nos olhos
dissemos, sei lá
o que nos passou pela tola [o que nos passou pelo goto]
do estilo és o "number one"
dou-te vinte valores
és um treze no totobola [és o seis do meu totoloto]
e às duas por três
bebemos um copo
fizemos o quatro e pintámos o sete
e com um brilhozinho nos olhos
ficamos imóveis
a dar uma de "tête a tête"

E que é que foi que ele disse?
...

E com um brilhozinho nos olhos
tentamos saber
para lá do que muito se amou
quem éramos nós
quem queríamos ser
e quais as esperanças
que a vida roubou
e olhei-o de longe
e mirei-o de perto
que quem não vê caras
não vê corações
com um brilhozinho nos olhos
guardei um amigo
que é coisa que vale milhões.

E que é que foi que ele disse?
... "

"Com um brilhozinho nos olhos" de Sérgio Godinho