sexta-feira, junho 19, 2009

Quem escondes debaixo do tapete, Luís?

Ela já lá estava quando ele entrou. Estava sentada no cadeirão azul a ler um livro. Ele olhou em volta, indeciso sobre onde se sentar, acabou por escolher um sofá pequeno de cor difusa entre o bege e o amarelo, ao lado de uma mesa de canto com um amontoado de revistadas e uma jarra com flores de plástico, em frente a ela. Reparou imediatamente na capa do livro que ela estava a ler, era um dos seus livros preferidos, "História da gaivota e do gato que a ensinou a voar" do Sepúlveda. Sorriu, tinha quase a certeza que iriam passar algumas horas ali e só podia ser um bom presságio.
Ela estava de pernas cruzadas e balançava lentamente o pé enquanto passava as folhas do livro. Estava tão concentrada que praticamente nem levantou os olhos quando ele entrou e disse "bom dia". Foi só quando se levantou para ir buscar um copo de água a uma máquina com um garrafão de pernas para o ar, que o viu e o cumprimentou devidamente. Ele estava sentado em frente a ela e tinha nos olhos a serenidade de um pôr do sol em Agosto. Folheava revistas ao acaso, sem grande interesse e foi ele que deu início à conversa.
A propósito do livro que ela estava a ler, falaram de metáforas e formas de ver o mundo, aos poucos foram-se abrindo e partilhando um pouco de tudo e de nada. Sem se aperceberem já estavam a falar das escolhas e gostos, dos medos e expectativas, dos amores e desamores, como se conhecessem desde sempre. Ele estava entusiasmado, não esperava uma sintonia tão imediata com uma desconhecida, parecia que estavam num filme, ele começava uma frase que ela acabava na intenção exacta com que ele começara. Ao fim de duas horas, que mais pareciam ter sido dois minutos, ele começou a pensar que, se calhar, as almas gémeas não eram, afinal, uma invenção da Disney.
A certa altura ela, sentada no cadeirão azul, agarrou uma resposta que tentava sair, espontânea e genuína, e deu consigo a pesar as consequências que aquela confidência teria na imagem dela que ele estava a desenhar na sua cabeça e que, assim de repente, ela queria preservar. Não a deixou sair, antes respondeu com uma frase redonda e sem grande significado, ou com todos os que se quisessem retirar dela. Devagar, como quem estende as pernas para esticar os músculos, levantou a ponta do tapete colorido que, entre eles se estendia no chão, e empurrou para baixo dele os recortes da sua vida que lhe pareceram menos apropriados ao tal retrato dela que ele estaria a compor a partir daquela conversa e continuou a falar, como quem assobia para o lado.
Conversavam descontraidamente e sem direcção pré-definida, quando ele se engasgou antes de responder a uma questão levantada por ela. A resposta, que se formou ao mesmo ritmo da conversa, enrolou-se na garganta e não saiu quando ele imaginou qual seria a reacção dela ao ouvi-la dita por ele. Ao mesmo tempo que criou um novo diálogo, mais ao gosto do que lhe pareciam ser os parâmetros dela, fingiu apanhar algo do chão e levantou uma ponta do tapete colorido, debaixo da qual, aconchegou tudo o que preferia que ela não ouvisse.
O tapete que os separava era feito de pequenos recortes de tecidos diferentes e formava uma imagem colorida e aberta a quaisquer interpretações que lhe oferecessem. À medida que eles, sentados em frente um do outro, começaram a esgotar os assuntos de conversa, debaixo do tapete as palavras, frases, relatos, deslizes e sonhos que lá tinham sido depositados entravam em relação, encontravam pontos de contacto e estabeleciam sintonias.
Na verdade, ainda que no ar se mantivesse uma luz límpida e alegre, aos poucos, ele pegou numa revista e ela voltou ao livro. O tempo continuou a avançar, ao seu próprio e incontrolável ritmo, até que os dois se despediram. Por baixo do tapete as faces ocultas de cada um foram obrigadas ao afastamento e disseram adeus com a certeza de terem acabado de se despedir da sua cara-metade.
Liliana Lima
"Só pode voar quem se atreve a fazê-lo..."
in "História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar"
de Luís Sepúlveda