segunda-feira, junho 08, 2009

O que te tráz o tempo, Ana?!

Ele estava quase a chegar, os ponteiros avançavam apressados no relógio grande em cima dos sofás da sala. Ela vagueava pela casa, atarefada. Tudo devia estar arrumado, limpo, perfeito... Sacudiu as almofadas e colocou-as aos pares nos cadeirões de verga da varanda, dispôs as fotos alinhadas nas prateleiras ao lado da mesa de jantar, tirou uma em que estava com uma cara triste, tirou outra de "há séculos" com o namorado da altura, apanhou os livros espalhados um pouco por toda a casa e encaixou-os nas prateleiras respectivas, separando autores portugueses de autores estrangeiros e poesia de livros técnicos.

Olhou em volta, entrou no quarto e na casa de banho para a última inspecção, abriu a porta da varanda para arejar a sala e pôs a água a aquecer para o chá. Estava tudo perfeito, parecia uma casa das revistas! Sentou-se no sofá pequeno e ligou a aparelhagem. Contou os segundos seguindo o ponteiro irrequieto e esperou.

Ele andava às voltas no Centro Comercial, sem se decidir entre um ramo de flores e uma caixa de chocolates. Não queria cair no ridículo, mas queria impressioná-la. Já tinha comprado os chocolates quando decidiu que o ideal seriam mesmo as flores, afinal não há nada como os clássicos e as flores caem sempre bem. Voltou atrás, o tempo que não esperava pelas suas hesitações continuava a avançar, indisciplinado, em todos os relógios da loja em frente à florista. Correu pelas escadas rolantes e, já atrasado, rumou a até à casa dela.

Chegou com um ramo colorido, alguns minutos de atraso e um sorriso nervoso. Ela esperava-o de vestido rodado e o chá pronto a servir na varanda. Sentaram-se e conversaram toda a tarde. As conversas são como as cerejas e, sem darem conta, o nervosismo tornou-se em boa disposição e à-vontade. O relógio grande em cima dos sofás da sala, entusiasmado com a conversa, esqueceu-se de avançar e o tempo parou naquele lusco-fusco dos fins-de-tarde de Junho.

Falaram de tudo e de nada, interrompendo-se mutuamente num turbilhão de assuntos e sorrisos. Deixaram a varanda e decidiram passear a pé, descendo a rua até ao rio, que dançava entre pequenas luzes que acendiam e apagavam, reflectindo a noite de Lisboa. Estiveram assim muito tempo, olhando o rio, conversando, sorrindo...

Um dia, o relógio grande da sala acordou e lembrou-se que os ponteiros não param, que o tempo corre, que a vida segue, e recomeçou a eterna viagem à volta dos números que se sucedem num círculo perfeito.

Eles tinham-se já habituado ao lusco-fusco e a luz feria-lhes os olhos. As horas pediam-lhes outro ritmo, a cidade em correria tirava-lhes o fôlego, o cansaço roubava-lhes as conversas ao entardecer. Aos poucos as flores foram murchando, devagar. O chá tardou até que deixou de aparecer. A varanda, sozinha, perdeu o encanto. E as palavras deixaram de se encontrar. Passaram assim muito tempo, sós ao lado um do outro...

Um dia, um fim-de-tarde em Junho, encontraram-se por acaso na varanda. Os cadeirões gastos e descorados pelo sol não os convidaram a sentar e decidiram descer a rua até ao rio que dançava entre pequenas luzes que acendiam e apagavam, reflectindo a noite de Lisboa. Sentaram-se à beira-rio e lembraram-se de outros tempos, falaram de tudo e de nada, sobre o tempo que não pára, sobre os dias que passam, sobre os anos que correm.

As conversas são como as cerejas e, sem darem conta, de repente era já quase manhã. Voltaram a casa e assim ficaram, num tempo que não pára mas que, como nas fotografias, podiam agarrar, puxar, fazer recuar ou avançar. Voltaram a casa e assim ficaram, obrigando o tempo a parar sempre que se esqueciam do que, um dia, os fez parar o tempo.


Liliana Lima




"como se o vento trouxesse
recados
que pudesse abandonar
ao serviço do mensageiro

como se o vento te pudesse levar
e as palavras transformar
no milagre da cerejeira

não descuides o vento
que quem uiva
é lobo faminto

rodeia-te antes do essencial
faz-te cozinheira, semeia o teu quintal

o que por natureza rola
há-de rolar
e tu sozinha
o que podes contra o vento?"

"Como se o vento trouxesse" de Ana Paula Inácio
in Vago pressentimento, azul por cima