quinta-feira, junho 25, 2009

Deixa-me contar-te um segredo, João...

Vou-te contar um segredo. Tenho saudades de passear contigo à beira mar, naqueles dias que sorriam, despreocupados com as horas que correm e não param. Tenho saudades das torradas no aquecedor da sala, que levávamos para a cozinha e transformávamos em torradeira de primeira qualidade. Tenho saudades das tardes vagarosas e sem televisão, em que as histórias dançavam ao ritmo dos "parudiantes" e apenas se calavam à hora do "jornal da tarde" que o rádio se esforçava por sintonizar.

Vou-te contar um segredo. Tenho saudades dos dias maus em que nos sentávamos numa esplanada e desfrutávamos das delícias da vida em forma de "ducheses" e "babás" até ficarmos enjoadas. Tenho saudades acampar dentro de uma carrinha em que as noites eram tortas e um pouco doridas e os dias quentes e abafados.

Vou-te contar um segredo. Tenho saudades da última sessão procedida de uma análise completa à mensagem que o realizador quis passar, ao desempenho dos actores, aos diálogos entre os personagens e até à fotografia e qualidade de projecção, enquanto apanhávamos o comboio a caminho de casa. Tenho saudades das bolachas de água e sal, redondas, barradas com o doce de tomate num frasco sem etiqueta, que me parecia sempre de morango e que eu detestava.

Vou-te contar um segredo. Tenho saudades das manhãs dos banhos grandes e demorados em que, pelo meio de esfregadelas e ralhetes pela água que escorria e molhava o chão, me perguntavas a tabuada, sempre zangada por já não saber quanto é oito vezes seis. Tenho saudades dos passeios até Algés, sem apanhar o eléctrico "para fazer a digestão", enquanto espreitávamos as poucas montras do caminho.

Vou-te contar um segredo. Tenho saudades do azul do rio que me sorria no teu olhar. Tenho saudades do jardim que nos encobria os medos, dúvidas e ansiedades, jogando às escondidas com os nossos sentimentos e deixando-nos passar por brincadores. Tenho saudades dos sorrisos que me roubavas com a inocência infantil de quem ri de tudo e de nada.

Vou-te contar um segredo, é bom ter saudades. Olhar para trás, suspirar, e com a tranquilidade de quem sabe que o tempo gira sempre na mesma direcção, sorrir em vez de chorar.
Liliana Lima






"Tenho livros e papeis espalhados pelo chão.
A poeira duma vida deve ter algum sentido:
Uma pista, um sinal de qualquer recordação,
Uma frase onde te encontre e me deixe comovido.

Guardo na palma da mão o calor dos objectos
Com as datas e locais, por que brincas, por que ris
E depois o arrepio, a memória dos afectos
Que me deixa mais feliz.

Está na mesma esse jardim com vista sobre a cidade
Onde fazia de conta que escapava do presente,
Qualquer coisa que ficou que é da nossa eternidade.
Afinal, eternamente.

Deixa-te ficar na minha casa.
Há janelas que tu não abriste.

O luar espera por ti
Quando for a maré vasa.
E ainda tens que me dizer
Porque é que nunca partiste..."


"Deixa-te ficar na minha casa" de João Gil
(no CD Filarmónica Gil)