terça-feira, junho 30, 2009

Anda daí brincar com o tempo, Álvaro!


Seduz-me esta coisa do tempo. Do tempo que corre sem dar tempo para respirar. Do tempo que parece fervilhar num frenesim primaveril. Do tempo que pára e congela tudo o que nos rodeia deixando apenas o foco da nossa atenção avançar em câmara lenta, só para nós. Do tempo que se demora num ronronar matinal. Do tempo que não avança e nos magoa por se deixar ficar para mais um copo. Do tempo que não tenho mas que uso como meu. Do tempo perdido. Do tempo que demora anos a passar num minuto. Seduz-me esta coisa do tempo...

Ao escrever, dou-me conta que brinco com ele. Como quem projecta um filme no céu escuro das noites de Lua Nova, avanço e recuo a meu bel-prazer. Não respeito a linha cronológica dos acontecimentos, antes invado com anarquia as leis temporais da escrita. Aqui, na folha em branco sobre a qual me imprimo, sou eu quem manda no tempo.
Gosto deste jogo de sedução entre o ontem e o amanhã, entre o que foi e o que há-de ser. Acho que é algures, nessa terra de ninguém onde as ideias nascem e dançam com as palavras, que o tempo se sente livre e nos deixa entrar na espiral infinita que regula os segundos e os minutos e as horas e os anos em que nos movemos aqui, na vida real.
Na verdade, acho que é dentro de nós que está o relógio que comanda o tempo onde nos movemos. Na verdade, descubro que sou eu quem, deveras, faz correr ou parar o tempo que me parecia vindo de fora. Imagina... Imagina que em vez de o entendermos como algo exterior a nós, que nos impõe um ritmo e um compasso, o percebíamos vindo de dentro, regulado por nós, imposto apenas pelo bater do nosso coração. Então, qual Bartolomeu que cruza o Cabo das Tormentas, teríamos nas nossas mãos essa areia fina que corre na ampulheta e seríamos nós quem decidiria baptizá-lo de Cabo da Boa Esperança. Imagina...
Seduz-me esta coisa do tempo. Gosto de o baralhar à esquina de um abraço e, como quem não quer a coisa, fazê-lo parar. Gosto de o agarrar na volta de um olhar e fingir que não vi, obrigando-o a esperar por mim. Divirto-me a empurrá-lo quando volto para casa com o coração a bater depressa num sobressalto de saudade. E sempre que a vida me troca as voltas e me maltrata, olho-o nos olhos e faço o jurar que não voltará a passar por ali.
Liliana Lima




"(...)

Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos - nem mais nem menos -
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil.
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos -
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.


(...)

(Passageira que viajaras tantas vezes no mesmo compartimento comigo
No comboio suburbano,
Chegaste a interessar-te por mim?
Aproveitei o tempo olhando para ti?
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
Qual foi o entendimento que não chegámos a ter?
Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto a vida?)

Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino."


"Aproveitar o Tempo" de Álvaro de Campos
in "Poemas"