domingo, abril 19, 2009

A vida é como os comboios, Fernando?

"Ai, isto já não tem melhoras, já cheguei ao fim da linha..." disse uma velhota gorducha, de cara rosada, cabelo branco encaracolado e um sorriso do tamanho de toda a estação dos Correios. "Ah! Eu sei o que isso é!" respondeu outra, no fim da fila, de bengala castanha e costas ligeiramente curvadas, com o cabelo enrolado num caracol encarrapitado no alto da cabeça. A conversa continuou, entre as risotas das mais bem humoradas e os queixumes das mais amarguradas, durante todo o tempo em que eu, calada, esperava a minha vez para comprar um envelope.

"Isto agora já não é como antigamente, já ninguém tem paciência! No meu tempo dávamos valor às coisas, agora é tudo para ontem..." dizia a gorducha olhando de soslaio para mim, quando me viu de envelope de Correio Azul na mão. As outras confirmaram o facilitsmo dos novos tempos enquanto saí com a nítida sensação de ter passado pela quinta dimensão.

Espreitei pelo vidro para aquele "coro das velhas" enquanto me afastava devagar, ainda com os movimentos presos de tantas dores nas cruzes... Sentei-me numa esplanada enquanto preenchia uns quaisquer impressos e os fechava dentro do tão apressado envelope de correio azul. Ao fundo, um comboio avisava que ia partir e, no meio do burburinho da cidade, aquela frase ressoou na minha cabeça "cheguei ao fim da linha".

Sem me dar conta, aproximei-me da estação e fiquei a olhar para o corropio de quem sai dos comboios que chegam e de quem espera pelo próximo a partir. Os que partem iniciam a viagem ao mesmo tempo que finalizam o percurso que os levou até ali, por outro lado (ou não...), quem chega acaba o caminho enquanto dá início a um novo percurso.

Estamos sempre a chegar e preparamo-nos constantemente para partir... Somos mudança constante entre o partir para um sorriso, e o chegar de uma qualquer desilusão. Estamos em movimento contínuo entre o início de um gesto, e o desviar de um olhar.

Ali, no terminal dos comboios, percebi que também eu "cheguei ao fim da linha" ao mesmo tempo que me preparo para descobrir a estrada que dará início a uma nova viagem.

Liliana Lima


"No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada -
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela -
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E outros nem sim nem não
No comboio descendente
De Palmela a Portimão..."

"Que grande reinação" de "Poemas para Lili"
Fernando Pessoa in Obras Completas