terça-feira, abril 21, 2009

Vamos cantar, Sérgio?



A pergunta era simples além de óbvia, afinal perceber qual é o nosso timbre deve ser o primeiro passo de qualquer trabalho que se desenvolva à volta da voz e do canto. Ainda para mais para quem está, de facto, a considerar a possibilidade de integrar um grupo coral. Resumindo, era uma questão básica e que precisava de resposta.
No entanto, e apesar do meu sobejamente conhecido bom-feitio, confesso que, de quando em vez, me acontece sentir uma certa dificuldade em aceitar regras daquele tipo em que a resposta tem de ser "branco ou preto", "sim ou não". Tenho sempre vontade de responder um grande, redondo e bem audível "nim". Mas ali estava eu, à frente da maestrina que me olhava já de sobrolho franzido, enquanto atrás de mim, se arrumavam calmamente sopranos e tenores à esquerda, baixos e contraltos à direita, sem dificuldades nem dúvidas existenciais.
Gaguejei "contralto...", depois como quem se arrepende "soprano, acho que consigo chegar a soprano..." por fim já baixinho, quase sussurrando "mas talvez seja contralto...". Pensava nos dias de Sol em que a voz sai translúcida e os agudos me parecem tão perto, ali mesmo ao virar da esquina, em contraponto via os dias cinzentos em que os graves são naturais e pedem para os apanhar. Imaginava-me contrariada, obrigada a viver eternamente num dia de sol sem direito às minhas neblinas, ou amordaçada num horizonte permanentemente encoberto, sem sol nem estrelas. A decisão parecia-me impossível, redutora e sem espaço para a criatividade pessoal e individual.
Depois de muitas hesitações a maestrina decidiu "arrumar-me" no lado dos contraltos e encerrou o assunto para não atrasar mais o ensaio. Ainda desconfiada com a decisão, subi as escadas e assumi a minha posição no grupo, peguei nas partituras e integrei os exercícios de aquecimento. Cantei no ensaio, e nos outros que se seguiram, a questão foi-se diluindo na magia de deixar de ouvir a minha voz e aperceber-me parte de um todo muito mais abrangente que apenas se consegue coordenando ritmo, respiração, entoação e melodia.
Agora que me sinto já parte desta melodia conjunta, começa a ser-me possível descobrir o meu timbre dentro do timbre meu. Somos todas contraltos, mas umas têm uma caixa torácica mais larga, aguentam mais tempo as notas, outras conseguem subir de tom com maior facilidade, outras ainda têm uma voz mais limpa ou uma melhor dicção.
As nossas pequenas diferenças, as características que fazem de nós únicos e irrepetíveis, por muito pouco audíveis que sejam para quem está longe, hão-de ser sempre reconhecíveis para quem nos rodeia. Não é o meu timbre que me caracteriza, mas sim a forma como eu me integro nele, respeitando o tom, o ritmo, a entoação, mas cantando sempre com a minha voz, energia, postura, enfim, comigo mesma...
Liliana Lima




"Benvindos todos ao salão de festas
faz bem andar metido nestas andanças
se agora danças
logo pensas
e mais
fazes diferentes
dias que eram iguais
ora puxa o corpo pra cá
quero o eco aqui que é de lá
faz por mexer, mexe
faz por mexer, mexe
e faz com que (oxalá!)
amanhã seja o que não há

Que bem se canta na Sé
mas é só para quem é
um sentado, outro em pé
mas aqui quem canta
é quem quiser (olha quem!)
isto enquanto é um canto
está sentado o desdém

Benvindos todos ao salão de festas
desbravaremos de florestas
e mares
se vais pelos ares
logo pousas e penso
melhor irás entre o furor e o bom senso
ora puxa o corpo pr´aqui
quero o eco cá que é daí
faz por fazer
o que hoje queres para ti
e que amanhã seja o que não vi

Que bem se canta na Sé
mas é só para quem é
um sentado, outro de pé
mas aqui quem canta
é quem quiser (olha quem!)
isto enquanto é um canto
está sentado o desdém

Quem dera que a energia que trouxe pudesse
habitar um só dia que fosse
o calor da tua hospedaria"

"Salão de Festas" de Sérgio Godinho (1984)