terça-feira, fevereiro 17, 2009

A quem deste o primeiro beijo, Alexandre?


Ela era uma rapariga bem comportada, vestia-se de acordo com os gostos da mãe, pacata, boa aluna, nunca dizia asneiras nem faltava ao respeito aos mais velhos. Vinha de um Colégio de renome e só trazia boas referências. Ela era a "rapariga nova" na Escola.
A Escola era uma vulgaríssima Escola Secundária, feita de Blocos pré-fabricados, num bairro periférico de Lisboa, com médias baixas e taxa de abandono escolar alta.

Ele tinha olhos azuis e cabelos loiros encaracolados. Estava um ano atrasado, tinha más notas e um monte de amigos que o acompanhavam para todo o lado formando uma espécie de bando de gaivotas saltitantes à sua volta. Ele era "o rapaz mais popular" da Escola.

Ele costumava passar os intervalos no Bar, namoriscando as varias raparigas que esvoaçavam alegres ou implicando com os que, para seu grande espanto, não faziam parte dos satélites da sua órbita.

Ela passava os intervalos mais ou menos sozinha, vagueando pelos espaços livres, tentando ao máximo passar despercebida num mundo que não entendia e ao qual sentia não pertencer.

Naquele dia ela foi ao Bar comprar a senha do almoço, ele estava à porta com as suas gaivotas, satélites irrequietos em movimentos elípticos em volta dele. Ela conhecia-o, era impossível não saber quem ele era, todos o conheciam. Ele nunca tinha dado conta da existência dela.

O "rapaz mais popular" descobria a "rapariga nova" da escola e queria-a para a sua colecção de troféus.

Naquele dia, quando ela entrou no entrar no Bar, com o seu ar tímido e gestos cautelosos, ele decidiu que a queria beijar. Agarraram-na e levaram-na até ele, dizendo-lhe que como "rapariga nova" da escola tinha de ser submetida a uma espécie de ritual de iniciação e, quer quisesse ou não, ele ia dar-lhe um beijo.

Chegada ao pé dele, resolveu soltar-se dos satélites, arrumar a timidez na mochila pesada que trazia às costas e mostrar-lhe que quem daria um beijo seria ela a ele. Não era uma gaivota do seu bando e não seria agarrada por uns parvos que daria, o que afinal era mesmo o seu primeiro beijo. Soltou-se das mãos que a agarravam, inspirou e, olhando bem fundo aqueles olhos azuis espantados, deu-lhe um beijo, virou-lhe as costas e saiu apressadamente do Bar, tentando não perder a compostura.

Nos dias seguintes tentou ser ainda mais transparente, não ir ao Bar, não almoçar na cantina e evitar ao máximo as gaivotas e os satélites que esvoaçavam um pouco por toda a escola. Não passou muito tempo até que os caracóis loiros viessem ter com ela. Como se escondido, como se clandestino chegou-se a ela e abriu aqueles olhos azuis claros agora interrogativos, quase suplicantes.

Ela era uma rapariga bem comportada, aprendia a viver num mundo ao qual sabia não pertencer; ele tinha más notas e um monte de amigos tontos que o seguiam como um bando de gaivotas. Ela deixou de ser a "rapariga nova" e ele continuou a de ser o "rapaz mais popular" da escola (até as gaivotas encontrarem novo sol) e tudo voltou ao normal na Escola secundária de um bairro periférico de Lisboa...

O namoro teve a duração de um beijo, mas acompanharam-na para sempre aqueles olhos azuis claros numa moldura de caracóis dourados. E, ainda que hoje já não brilhem, para ela estarão sempre guardados no seu álbum de recordações.

Liliana Lima 17/02/2009
(*Para o Luís que, por fazer parte daquele mundo, se deixou envenenar
até fechar para sempre os olhos azuis claros numa moldura de caracóis dourados...)


"Congresso de gaivotas neste céu

Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.

Querela de aves, pios, escarcéu.

Ainda palpitante voa um beijo.


Donde teria vindo! (Não é meu...)

De algum quarto perdido no desejo?

De algum jovem amor que recebeu

Mandado de captura ou de despejo?


É uma ave estranha: colorida,

Vai batendo como a própria vida,

Um coração vermelho pelo ar.


E é a força sem fim de duas bocas,

De duas bocas que se juntam, loucas!

De inveja as gaivotas a gritar..."


Alexandre O'Neill (O Beijo in 'No Reino da Dinamarca')