sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Também sonhas acordado, Pablo?!


Naquela manhã ela saiu confiante, o céu estava limpo de um azul claro alegre. Tinha acordado cedo, ou melhor cedíssimo. Demorara a arranjar-se, vestiu-se e despiu-se várias vezes, vários conjuntos, até que optou não pelo mais novo, não pelo mais elegante... apenas pelo que gostava mais, o que a fazia sentir-se mais ela. O mais importante de tudo, afinal, tinham sido mesmo os sapatos, vermelhos. Toda a indumentária andara à volta deles, as combinações de cores, se saia, se calças... tudo girara em torno dos sapatos vermelhos. E agora já estava, já tinha saído, o dia sorria-lhe e ela estava confiante!


Os dias anteriores tinham sido decisivos para aquela atitude. Sair àquela hora, naquela manhã, com aqueles sapatos, não eram coincidências ao acaso, era algo estudado, pensado, reflectido e sentido.


Há três ou quatro semanas tinha-se encontrado com um antigo colega de escola, foi uma surpresa de outro colega comum. E que surpresa! Já não se viam há quê?! 15 anos?! Sim, por aí, no mínimo 15 anos. "Estás na mesma! Conhecia-te à légua!" As perguntas da praxe, onde andas, que tens feito, estás casada, tens filhos?... As respostas parecidas, os percursos mais ou menos previsíveis. Até que ele fez uma pergunta, tão inocente, tão banal... "Que fazes na vida?" e a resposta ainda mais banal... "Sou contabilista". A cara dele reflectiu o seu espanto, a sua surpresa e a sua estranheza... "Contabilista? Tu? O que te aconteceu?! Perdeste-te no caminho?!" A conversa continuou, desviada para os filhos, os maridos, as mulheres, e as lembranças dos três adolescentes a viver as primeiras descobertas da vida.


Depois do almoço, os "Temos de combinar mais vezes" seguiram-se e todos prometeram combinar um novo almoço com as famílias respectivas mas, claro, nenhum cumpriu a promessa... as canseiras da vida não o permitiram.


No entanto, a cara de espanto dele não lhe saía do pensamento. Aquela pergunta ecoava na cabeça dela noite e dia como um relógio de igreja que pontualmente toca de 15 em 15 minutos e à hora certa acerta as batidas com o número de horas que anuncia. "Perdeste-te no caminho?!" Respondia sozinha, fazia diálogos inteiros de si para si, entoando varias desculpas. Desculpas não! Razões! Razões válidas para opções válidas que fizera na vida. Primeiro o casamento, depois os filhos, depois ainda o casamento e sempre os filhos... Será que se perdera?! No meio de tantas razões válidas, ter-se-ia perdido?!


As noites ficaram cada vez mais brancas e as questões cada dia mais negras. De repente parecia que o mundo se tinha virado de pernas para o ar e ela, fazendo o pino, procurava a sua essência, o que a fazia sorrir por dentro, encher-se de energia e vontade de viver de novo, com cambalhotas se tal fosse necessário, mas viver completa e intensamente. Mas sempre as razões tão válidas, tão importantes, tão prementes, que a faziam voltar ao eixo e andar direita, sem curvas ou pinos.


Aqueles dias foram decisivos para, naquela manhã, estar a sair de casa assim, com os seus sapatos vermelhos, a sua camisola preferida e as calças de ganga de que tanto gostava. Foi durante aqueles dias, entre o tal almoço com o colega de escola e aquela manhã, que se encontrou. Não foi fácil a descoberta, tivera de procurar muito, levantar muita poeira, sacudir as razões, beliscar as certezas, questionar as opções. Mas encontrara-se, dentro de um baú velho, cheio de recortes e recordações.


Depois de se ter encontrado, nada tornou a ser como antes. É claro que sempre os filhos, é claro que ainda o marido e o emprego, e a família. Estava tudo lá, mas ela tinha mudado (ou talvez não), ela tinha tomado consciência de si, do seu sonho, da sua essência.


Naquela manhã saiu confiante, o céu estava limpo de um azul claro alegre e ela sabia exactamente por onde seguir. Não fazia a mínima ideia de onde ia chegar, ou como seria o caminho, ou quando chegaria ao fim. Mas naquela manhã, com a roupa que a fazia sentir-se mais ela e os sapatos vermelhos, ela tinha a certeza absoluta, sem sombra de dúvida, que o caminho era aquele e foi aí, nessa esquina, que ela virou, o dia sorria-lhe e ela estava feliz!



Liliana Lima 13/02/2009

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"Morre lentamente quem não viaja,
Quem não lê, quem não ouve música,
Quem destrói o seu amor próprio,
Quem não se deixa ajudar

Morre lentamente quem se transforma escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajecto, quem não muda as marcas no supermercado, não arrisca vestir uma cor nova, não conversa com quem não conhece. Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o “preto no branco” e os “pontos nos is” a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos. Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos. Morre lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante, desistindo de um projecto antes de iniciá-lo, não tentando um assunto que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves, recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior do que o simples acto de respirar. Estejamos vivos, então!"



Pablo Neruda