quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Como explicar o que sou, José?

Fervo a água para o chá e componho o tabuleiro com a torradeira, as ideias confundem-se no vapor que sai da chaleira...

-"Às vezes não sei explicar o que sou, o que faço... parece que me perco no meio das palavras e deixo cair os significados." disse eu espalhando manteiga numa torrada ainda fumegante.

- "Isso é porque queres dizê-lo numa língua que não é tua. Procuras as palavras do mundo e renegas as tuas referências. Tentas descodificar as tuas metáforas, explicar as tuas idiossincrasias. Perdes tanto tempo a explicar as palavras que acabas por perder o significado. Passa-me a manteiga, se faz favor."

Passo-te a manteiga enquanto mastigo o que me queres dizer, preciso de tempo para digerir as palavras, sentir-lhes o significado e descodificar-lhes o sentido. No relógio da sala os ponteiros respeitam a minha hesitação e param por um momento.

- "Não sei se é bem isso, mas se calhar até tens razão... parto do princípio que sou complicada e isso leva-me a procurar, à priori, explicações para o que ainda não disse. Mas além disso, tenho sempre a sensação que não sei encontrar as palavras certas, que carreguem o simbolismo certo, exacto, daquilo que procuro fazer. É como se, só fazendo o consigo explicar..."

O chá está pronto, sirvo-te e misturo água fria na minha chávena. O vapor mistura-se com o cheiro das torradas e ambos dançam ao som do fado que toca na aparelhagem.

- "O que eu sei é que já te vi explicares varias vezes o que fazes e porque o fazes. Percebes o que quero dizer? Sempre que falas do que fizeste, do que tens programado, dos livros que sugeres... Repetes expressões, invocas referências, compões metáforas... É aí que estás tu, é nessa forma de expressão que te leio, que te encontro."

Mais uma vez as palavras chegam-me mas o seu significado está desfasado, como num filme dobrado em que o som não corresponde aos movimentos dos lábios, demoro a perceber o que me dizes. Passo-te o açúcar e com ele as minhas dúvidas que persistem apesar do vapor das tuas palavras.

- "Queres dizer que me explico melhor quando não me quero explicar?"

- "Quero dizer que és verdadeira quando não te procuras traduzir. Quando falas sem te preocupar com quem te está a ouvir..."

A aparelhagem esforça-se por me ajudar a entender o que dizes, aumenta o som e ouvem-se as palavras que rodopiam à minha volta pousando no chá que bebo e na torrada em que espalho geleia.

Quanto mais quero entender-te mais longe me sento. Desisto, escuso-me a responder para não prolongar a conversa. Desvio o olhar mas o fado que toca entra-me pela pele, obriga-me a ouvir-te e a entender as tuas palavras... "Canta da cabeça aos pés / Canta com aquilo que és / Só podes dar o que é teu"...


Liliana Lima 25-Fev-2009








"Não cantes alegrias a fingir
Se alguma dor existir
A roer dentro da toca
Deixa a tristeza sair


Pois só se aprende a sorrir
Com a verdade na boca
Quem canta uma alegria que não tem
Não conta nada a ninguém


Fala verdade a mentir
Cada alegria que inventas
Mata a verdade que tentas
Pois e tentar a fingir


Não cantes alegrias de encomenda
Que a vida não se remenda
Com morte que não morreu
Canta da cabeça aos pés
Canta com aquilo que és
Só podes dar o que é teu"



"Fado da tristeza" de José Mário Branco