sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Vens por aqui, José?

Entrámos no barco sem dizer palavra, sentámo-nos e pegaste nos remos.

Entendo tão bem o que me dizes com esse olhar… Estás cansado, não era este o caminho pensavas fazer. E no entanto, quando te disse que era por aqui não hesitaste e entraste comigo. Não sei porque tenho esta certeza, mas sei que o caminho certo é este.

O rio está calmo, mas a corrente obriga-nos a um esforço suplementar. Ajudo-te a pegar nos remos, avançamos devagar, mas vamos subindo o rio.

Nas margens há pessoas que nos acenam “vão ao contrário… a paisagem é mais bonita na foz”, acenamos também mas continuamos rio-acima, com calma.

Aproveitamos uma pequena baía e paramos para descansar. O teu olhar diz-me que continuas cansado, mas confiante. Acreditas em mim e eu sei que, contigo o barco está mais estável. Começamos a falar mas as “palavras estão gastas” e não nos falam das coisas importantes. Os teus olhos sim, dizem-me que devemos partir, está a fazer-se tarde, sinto-te inquieto. Achas que a viagem será mais difícil a partir daqui, remar contra a corrente não é fácil, mas eu sei, eu sinto que é lá em cima, perto da nascente que nos vamos encontrar. Acalmo-te com a minha certeza e entramos novamente em silêncio no barco.

Voltar ao ritmo é difícil, avisto na margem um grupo de crianças que brincam na água. Aproximam-se nadando e perguntam-nos porque vamos por ali, porque não subimos pela margem até à nascente como todos os outros. Olhas para mim, entendo tão bem o que me dizes com esse olhar… Inspiro-me nele e não desisto, sei que é este o caminho, não sei porquê, mas sinto que é por ali. Devolvo-te o sorriso e continuamos a remar.

Estamos quase a chegar, já oiço o burburinho da água que cai das pedras lá ao fundo. Os teus olhos estão cansados, mas acompanham-me nesta viagem. Cada vez que duvido de mim é neles que reencontro as certezas que tenho cá dentro.

Entendo tão bem o que me dizes com esse olhar… Não era este o caminho que pensavas fazer e, no entanto, aqui estás, ao meu lado, remando comigo contra a corrente. Estás cansado, mas confortas-me. Estamos quase a chegar!

Não era este o caminho que pensavas fazer mas entraste no barco, sentaste-te ao meu lado e remaste comigo… Pergunto-me porquê… Pergunto-me se o teria conseguido sem ti…

Procuro nas margens, mas já não avisto ninguém. Estamos quase a chegar e, aqui, estamos sozinhos. Agora que as certezas dançam no ar como borboletas coloridas num jardim florido, já posso confessar que houve alturas em que duvidei, que houve alturas em que foste tu que me mantiveste sentada, a remar. Os teus olhos respondem-me com as mesmas palavras, estivemos os dois no mesmo barco, construído de certezas e alimentado pela força dos olhares que trocámos.

Se eu te disse o caminho tu deste-me, sem dúvidas, a força para lá chegar. Foi nesse tabuleiro de compromissos, que jogámos as certezas e as inseguranças, sempre apoiados na confiança dos olhares que trocámos.

Liliana Lima 26/02/2009
(com um abraço ao 'outro' José que me desafiou a escrever este texto)




""Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces

Estendendo-me os braços, e seguros

De que seria bom que eu os ouvisse

Quando me dizem: "vem por aqui!"

Eu olho-os com olhos lassos,

(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)

E cruzo os braços,

E nunca vou por ali...


A minha glória é esta:

Criar desumanidade!

Não acompanhar ninguém.

- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade

Com que rasguei o ventre à minha mãe


Não, não vou por aí! Só vou por onde

Me levam meus próprios passos...


Se ao que busco saber nenhum de vós responde

Por que me repetis: "vem por aqui!"?


Prefiro escorregar nos becos lamacentos,

Redemoinhar aos ventos,

Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,

A ir por aí...


Se vim ao mundo, foi

Só para desflorar florestas virgens,

E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!

O mais que faço não vale nada.


Como, pois sereis vós

Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem

Para eu derrubar os meus obstáculos?...

Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,

E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem,

Amo os abismos, as torrentes, os desertos...


Ide! Tendes estradas,

Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tectos,

E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...

Eu tenho a minha Loucura !

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,

E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...


Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,

Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.


Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!

Ninguém me peça definições!

Ninguém me diga: "vem por aqui"!

A minha vida é um vendaval que se soltou.

É uma onda que se alevantou.

É um átomo a mais que se animou...


Não sei por onde vou,

Não sei para onde vou

- Sei que não vou por aí!"

Cântico Negro de José Régio