Voou, rodopiou no ar, fez uma pirueta e poisou de mansinho aos meus pés...
Baixei-me para lhe pegar - O que és?! O que queres comigo? Afinal não foi um acaso que te trouxe até mim. Não. Voaste, rodopiaste, fizeste uma pirueta no ar e, por fim... poisaste nos meus pés. O que és? Um papel?! Que queres de mim afinal?!
Baixei-me para lhe pegar, para matar a curiosidade que me enchia ao olhar aquele pedaço de papel amarelado que Me escolhera para se dar. Mas as costas discordaram do gesto e, num pequeno estalido, fizeram sentir a sua opinião...
Ai! As cruzes... que raio! Deixem-me baixar mais um bocadinho... A curiosidade a roer-me - O que és tu?! Que queres comigo? E as costas a obrigar um movimento brusco, contrário à minha vontade... a endireitar-me, a esticar-me.... Ai! As cruzes... que raio!
E nesse instante uma leve brisa a soprar e o papel amarelado poisado aos meus pés a ensaiar um novo voo... Não! Espera! És meu... escolheste-me a Mim para te dar... Eu já te apanho, é só curvar-me um bocadinho e... Ai! As cruzes...
E a brisa novamente, a soprar, a embalar o voo rodopiante do Meu pedaço de papel amarelado.
Enquanto acompanhei a sua fuga ao sabor do vento... ainda consegui ler "Lotaria do Natal"...
LL - 29-Março-2006
Em rodopio, em novelos,
Milagres, uivos, castelos,
Forcas de luz, pesadelos,
Altas torres de marfim.
Ascendem hélices, rastros...
Mais longe coam-me sois;
Há promontórios, faróis,
Upam-se estátuas de heróis,
Ondeiam lanças e mastros.
Zebram-se armadas de cor,
Singram cortejos de luz,
Ruem-se braços de cruz,
E um espelho reproduz,
Em treva, todo o esplendor...
Cristais retinem de medo,
Precipitam-se estilhaços,
Chovem garras, manchas, laços...
Planos, quebras e espaços
Vertiginam em segredo.
Luas de oiro se embebedam,
Rainhas desfolham lirios;
Contorcionam-se círios,
Enclavinham-se delírios.
Listas de som enveredam...
Virgulam-se aspas em vozes,
Letras de fogo e punhais;
Há missas e bacanais,
Execuções capitais,
Regressos, apoteoses.
Silvam madeixas ondeantes,
Pungem lábios esmagados,
Há corpos emaranhados,
Seios mordidos, golfados,
Sexos mortos de anseantes...
(Há incenso de esponsais,
Há mãos brancas e sagradas,
Há velhas cartas rasgadas,
Há pobres coisas guardadas –
Um lenço, fitas, dedais...)
Há elmos, troféus, mortalhas,
Emanações fugidias,
Referências, nostalgias,
Ruínas de melodias,
Vertigens, erros e falhas.
Há vislumbres de não-ser,
Rangem, de vago, neblinas;
Fulcram-se poços e minas,
Meandros, paúes, ravinas
Que não ouso percorrer...
Há vácuos, há bolhas de ar,
Perfumes de longes ilhas,
Amarras, lemes e quilhas –
Tantas, tantas maravilhas
Que se não podem sonhar!... "
Rodopio - Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'