Estavam dois homens, aparentemente amigos, sentados numa mesa de café. Daqueles cafés lisboetas com história de Tertúlias Literárias que, se escutarmos com atenção ao fundo, atrás do barulho da máquina que mói o café, das vozes que entram e saem, das chávenas que se arrumam no balcão, podemos ainda sentir o som das palavras, a força da poesia, a verdade das convicções.
Estavam então dois homens, aparentemente amigos, sentados na segunda mesa, à esquerda quando se entra, com dois cafés já bebidos, uma água das pedras quase cheia e um cálice que tanto podia ser de vinho do Porto como de ginjinha meio vazio. A um canto da mesa, amontoados e sem qualquer ordem aparente, cinco ou seis livros de autores e géneros tão diferentes que podiam ter sido escolhidos ao acaso numa qualquer livraria da moda.
O homem mais velho, alto, magro, com um farto bigode e roupa algo fora de moda, parecia enervado e, rompeu o silêncio energicamente:
-Mas afinal, explique-me lá o que fez com os meus livros?! Diga-me homem! Não espera, com certeza, que depois de lhe confiar a minha colecção das obras de Fernando Pessoa, aceite este monte livros mal amanhados que, além de não serem meus, nada têm em comum com os que lhe emprestei... Vamos homem, explique-se!
O outro homem, mais novo, atarracado e gordinho, com uns óculos quadrados e um certo ar de cientista louco, respondeu ponderada e calmamente, como se alheio ao nervosismo do outro:
-Já lhe disse, a minha filha que tem três anos, encontrou os seus livros na minha mesa-de-cabeceira e, além de os riscar por completo, arrancou quase metade das folhas a cada um. Não se pode culpar uma criança por um erro inocente, mas como o tenho em grande consideração e sei que os seus livros eram peças quase únicas, resolvi repor o mesmo número de livros que me emprestou.
-Mas... estes livros não são nem parecidos com os meus... Não, desculpe mas não acredito em nada do que disse. Por favor, diga-me a verdade!
O homem do bigode estava notoriamente zangado e a sua postura confirmava-o, virava-se de um lado para o outro sem se conseguir aquietar. Por outro lado, o homem dos óculos quadrados mantinha a calma e acabou por responder:
-Pede-me a verdade, assim o farei. A minha mulher encontrou os seus livros em cima da minha mesa-de-cabeceira, como é muito arrumada e não suporta coisas fora dos sítios, ficou desnorteada com a situação e, ao pegar nos livros para os arrumar numa qualquer prateleira, entornou o copo de água que, infelizmente também estava, desarrumado, na mesa-de-cabeceira... ora os livros ficaram completamente encharcados. Como o tenho em grande estima e sei que os seus livros eram peças quase únicas, embora totalmente inocente do acontecido, decidi repor o mesmo número de livros que me emprestou.
O homem do farto bigode, cada vez mais exaltado levantou a voz e disse:
-Eu quero saber exactamente o que aconteceu com os livros que lhe confiei. Diga-me a verdade!
Mantendo o aparente alheamento, o homem com ar de cientista louco respondeu suspirando:
-A verdade, diz? Pois bem, então a verdade é que lhe pedi os livros emprestados para cair nas sua boas graças. Fiquei comovido por me ter emprestado exemplares raros das obras de Fernando Pessoa, mas nunca os cheguei sequer a ler. Na verdade, e infelizmente, a minha filha que tem três anos e a minha mulher que é muito arrumada...
LL 12-Abril-2006
"Eu tinha chegado à escola. O mestre quiz por força, saber porquê. E eu tive de dizer: Mestre! quando sahi de casatomei um carro para vir mais depressa mas, por infelicidade, deante do carro cahiu um cavalo com um ataque que durou muito tempo.
O mestre zangou-se comigo: Não minta! diga a verdade!
E eu tive de dizer: Mestre! quando sahi de casa... a minha mãe tinha um irmão no extrangeiro e, por infelicidade, morreu hontem de repente e nós ficámos de luto carregado.
O mestre ainda se zangou mais comigo: Não minta! diga a verdade!!
E eu tive de dizer: Mestre!quando sahi de casa... estava a pensar no irmão de minha mãe que está no extrangeiro ha tantos annos sem escrever. Ora isso é peor do que se elle tivesse morrido de repente porque nós não sabemos se estamos de lucto carregado ou não.
Então o mestre perdeu a cabeça comigo: Não minta, ouviu? diga a verdade, já lh'o disse!
Fiquei muito tempo calado, de repente, não sei o que me passou pela cabeça que acreditei que o mestre queria effectivamente que lhe dissesse a verdade. E, creança como eu era, puz todo o pezo do corpo em cima das pontas dos pés, e com o coração á solta confessei a verdade: Mestre! antes de chegar á Escola ha uma casa que vende bonecas. Na montra estava uma boneca vestida côr-de-rosa! A boneca tinha pelle de céra. Como as meninas! A boneca tinha olhos de vidro. Como as meninas! A boneca tinha tranças cahidas. Como as meninas! A boneca tinha dedos finos. Como as meninas! Mestre! A boneca tinha dedos finos..."
A Verdade - Almada Negreiros in A Invenção do Dia Claro
(versão original)