Houve um tempo em que a minha janela dava para o céu, era tão alta, tão alta que não tive tempo de crescer para nela me abeirar e descobrir o que escondia para além das nuvens de Inverno que me diziam de manhã "vamos chover", ou dos nevoeiros Outonais que a empalideciam como a um espelho de casa-de-banho depois de um duche que, ao invés de nos reflectir o corpo nu embirra num sombrio, cinzento e macilento esgar que nada transpõe, ou da luz clara, límpida e forte que me acordava nas manhãs de Verão.
Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma floresta de prédios, telhados sem telhas bonitas como as que daqui avisto, apenas cinzentos, cobertos de antenas desarrumadas como se bailarinos de dança moderna, daquelas em que cada um se move devagarinho sincronizado com o seu par num palco que se assemelha a um arranjo de entulho, delicadamente embalado pela brisa marinha. Janelas e janelas sem fim, com roupa que parecia também cinzenta, poluída, numa monotonia quebrada aqui e ali por uma ou outra floreira que, timidamente tentava sobreviver no meio do betão.
Houve um tempo em que a minha janela dava para um mosaico de quintais, alguns bonitos e arranjados com flores, vasos, banquinhos e churrasqueira para os almoços de domingo, em que filhos e netos se iam multiplicando e enchendo todo o mosaico numa azáfama de sons, cheiros e cores. Outros carrancudos, moribundos e sem graça, como os seus donos, senhores de roupão cinzento e senhoras de avental branco imaculado que a eles se abeiravam apenas às segundas de manhã, para a limpeza semanal (longe da azáfama dos almoços de domingo).
Houve um tempo, ainda, em que a minha janela se abria em par para o Tejo e dele sugava a claridade e a vivacidade suficientes para dar cor aos muitos e muitos carros que dela contabilizava enquanto os via passar, num constante frenesim de carreirinho de formigas incansáveis e imparáveis na sua lufa-lufa diária.
Hoje, quando abro a janela, às vezes encontro o canto de um galo tropeçando na buzina de um carro mais apressado. Às vezes, no Verão, quase que me invadem os troncos cobertos de folhas que teimam em atravessar a rua e entrar janela dentro. Outras vezes, no Inverno, os mesmo troncos já despidos fitam-me como que num lamurio de frio, que o cacarejar de outra galinha se apressa a abafar...
LL 16-11-2005