Um entre tantos casamentos falhados. Uma entre tantas divisões de bens, (e os males?! quem fica com os males?) o carro fica para ele, os electrodomésticos com ela, a aparelhagem leva-a ele, os pratos e os tachos abalam com ela.
Tudo se divide, tudo se quantifica, se pesa, se mede... Até que fica apenas o vazio de uma casa assombrada.
Meto a chave à porta e ao girar o canhão da fechadura acordo os sorrisos, as palavras, os amores e os desamores que ali viveram. Sobressaltada volto atrás e afasto-me da porta com a chave na mão.
Que se passa, estás bem?
Sim. Não, não é nada, deixa lá, abre tu a porta.
Dou-lhe a chave e ao estendê-la vejo as memórias dos escassos anos em conjunto projectadas no pequeno buraco da fechadura.
Ele pega na chave, abre a porta num só gesto e entra sem ouvir as gargalhadas ao calor da lareira do primeiro inverno; sem ver os lanches de domingo na mesa pequena da sala; sem se dar conta da cama que geme no quarto do fundo ou dos soluços abafados no canto da cozinha.
Um pouco a medo avanço pela entrada nua e oiço o vazio da casa. Foi tudo pesado, medido, quantificado, falta apenas dividir o pouco que ficou esquecido,
Leva tu este cesto...
Aproveita aquela manta...
Tropeço num riso e choco com um murmúrio,
Este sorriso, levas tu...?!
LL 30-11-2005
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certezade que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus."