quinta-feira, dezembro 04, 2008

Adeus, Eugénio...

Um entre tantos casamentos falhados. Uma entre tantas divisões de bens, (e os males?! quem fica com os males?) o carro fica para ele, os electrodomésticos com ela, a aparelhagem leva-a ele, os pratos e os tachos abalam com ela.

Tudo se divide, tudo se quantifica, se pesa, se mede... Até que fica apenas o vazio de uma casa assombrada.

Meto a chave à porta e ao girar o canhão da fechadura acordo os sorrisos, as palavras, os amores e os desamores que ali viveram. Sobressaltada volto atrás e afasto-me da porta com a chave na mão.

Que se passa, estás bem?

Sim. Não, não é nada, deixa lá, abre tu a porta.

Dou-lhe a chave e ao estendê-la vejo as memórias dos escassos anos em conjunto projectadas no pequeno buraco da fechadura.

Ele pega na chave, abre a porta num só gesto e entra sem ouvir as gargalhadas ao calor da lareira do primeiro inverno; sem ver os lanches de domingo na mesa pequena da sala; sem se dar conta da cama que geme no quarto do fundo ou dos soluços abafados no canto da cozinha.

Um pouco a medo avanço pela entrada nua e oiço o vazio da casa. Foi tudo pesado, medido, quantificado, falta apenas dividir o pouco que ficou esquecido,

Leva tu este cesto...

Aproveita aquela manta...

Tropeço num riso e choco com um murmúrio,

Este sorriso, levas tu...?!


LL 30-11-2005


"Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,

e o que nos ficou não chega

para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,

gastámos as mãos à força de as apertarmos,

gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.

Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;

era como se todas as coisas fossem minhas:

quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.

E eu acreditava.

Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,

era no tempo em que o teu corpo era um aquário,

era no tempo em que os meus olhos

eram realmente peixes verdes.

Hoje são apenas os meus olhos.

É pouco mas é verdade,

uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor,

já não se passa absolutamente nada.

E no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certezade que todas as coisas estremeciam

só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.

Dentro de ti

não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus."




Adeus - Eugénio de Andrade