quinta-feira, agosto 07, 2014

praia

Não me lembro de algum dia ter ido à praia sozinha, tirando esta tarde de Agosto envergonhado em que decidi, à falta de companhia, dar-me esse tempo só para mim.

O caminhar ao sol sem ninguém que salta à minha volta, o percorrer do trilho de madeira até ao cimo da arriba sem tropeções nem escorregadelas, o descer as escadas por entre as dunas de areia amarela sem zangas nem gritos nem a palavra "MÃE" gasta rebolando até à beira-mar...

Pensamentos e imagens que me acompanharam à praia e com os quais conversei até aceitar, não só a sensatez como a legitimidade de usar comigo este tempo.

Olho à minha volta e não oiço nada para além do mar que em segredo me chama, na espuma que dança o tango com as ondas e se deleita na areia para, com elas, voltar ao turbilhão da corrente.

Sou eu só, ali na areia quente para quem não tenho de me esconder nem aprimorar nem mascarar. Sensação esquisita esta de ser por completo. Pergunto-me se algum dia me sentirei assim, livre, entre as dunas das pessoas. E, com o vento a bater na minha toalha a bater em mim, vem-me à memória um outro mundo também de mares e de colinas e de ondas em espuma e de corpos deitados sobre a toalha-lençol, onde também aí dispo as máscaras e convenções, saio do esconderijo perco o medo e, sim, sou eu somente que me entrego.

Deito-me neste colchão de areia que espera por mim. Abro o livro, companheiros fieis de todas as caminhadas, e converso com Cesariny. Conversa difícil de iniciar, referências não muito distantes mas estilos longínquos e palavras desconexas que me baralham, 

não percebo que queres dizer...

e ele altivo divertido distraído

não percebes? Nem eu mas também não faz mal 
a salvação dos homens cães não passa por aí. 
Ou passará? 
           Talvez tenha passado 
                             no eléctrico que avisa a manhã.
Mas não, os homens cães estripados, apodrecidos 
nas bermas sujas desta
 cidade         imunda          navio 
podre sem carga a borrar o cais com as porcarias 
obscenas dos senhores foices
Mas tu, meu amor, para sempre bela...

Passo as apresentações mais abstractas e aqui e ali começo a perceber o fio à meada que tem nós e avanços e recuos mas nos liga (diria que a todos) naquilo que é a essência da arte poética "ter pessoas dentro" (roubei a um amigo, se ele se queixar logo se muda).

Cansa-me no entanto a conversa, onde só eu pareço esforçar-me para manter um certo fio condutor de lucidez. Despeço-me, voltarei a ti mais tarde, e troco o livro pelo horizonte límpido azul brilhante fresco do mar, que tento tocar numa carícia feita abraço feita olhar feita mergulho. Dura pouco no entanto este embalo. 

O vento chama lá de cima da encosta e as horas, inquietas, segredam-me que os papeis deixados em banho-maria precisam de ser novamente inventados e recriados para o pôr-do-Sol. Visto a saia preta que se levanta com o vento e a blusa branca com um coração, arrumo no cesto Cesariny e o livro e a toalha e estas duas horas sozinha na praia. A subida é íngreme e comprida até ao trilho de madeira que ainda me leva ao caminho até casa.

Vejo o mar a encolher e a areia marela ao fundo e vejo-me a mim também, subindo a arriba. Muito devagar vou vestindo os tropeções as escorregaldelas as zangas e os gritos. Dobrada com muito cuidado em cima do banco já de cimento já na estrada, a palavra "MÃE" que leio devagar e com todo o carinho de mãe até interiorizar o seu infinito significado.

Não me lembro de algum dia ter ido à praia sozinha, mas não faz mal. Quantos de vós já teve o privilégio de conversar descontraidamente na toalha de praia abanada pelo vento durante duas horas banhadas pelo cheiro e canto do mar com Cesariny?!?!

Liliana