quarta-feira, novembro 21, 2012

Vieste para ficar David?

O que te diz o espelho, David?

Ele olhou-a de soslaio, lá do fundo do quarto. Tinha saído do banho e vinha apenas com a toalha amarela com riscas azuis enrolada à cabeça, como um grande cacho de frutas que cantava "o que é que a baiana tem...".

Ligou o rádio em cima da cabeceira empoeirada e, ao ritmo de uma qualquer música da moda, balanceava o corpo enquanto tirava peças de roupa ao acaso de dentro da mala de viagem. A cama foi-se enchendo com um emaranhado de camisolas, soutiens, saias, blusas, cuecas, casacos... que escolhia, experimentava e novamente despia, num frenesim de feira em plena actividade.

Tinha saudades dela! Há quanto tempo não a tinha assim, só para ele, para seu deleite. Olhava para ela e lembrava os dias, anos, em que fora de facto o seu companheiro de quarto. Horas que passaram a olhar um para outro, olhos nos olhos, comungando da mais profunda cumplicidade.

Algo mudara durante a sua ausência, estava mais desinibida, já não tinha vergonha de o olhar assim, despida, antes parecia provocá-lo propositadamente com aquele desfile bamboleante em trajes menores.

Ah! Quanto tempo o deixara ali, sozinho. Há quanto tempo não via aquela toalha a cantar "o que é que a baiana tem..."! Há quanto tempo não sentia aquele nervosismo ritmado ao som da música que parecia aumentar de volume cada vez que ela se aproximava e o olhava tão fixamente, quase através dele...

Havia, no entanto, uma certa amargura na sua expressão, uma mágoa que lhe entristecia o olhar, como a névoa que paira sobre o Tejo nas manhãs de Outono. O seu corpo dançava "como sempre, como antes", mas os seus olhos denunciavam uma inquietação nova, que ele desconhecia. Havia nela algo de novo, já não era a rapariga que crescera com ele, era uma mulher decidida, desinibida, desiludida talvez, mas com vontade de viver, de se recriar. Lia-o no seu corpo e nos seus gestos.

O espelho olhou-a de soslaio, lá do fundo do quarto, na parede em cima da cómoda. Estava vestida e continuava a balancear-se ao som da música do rádio, enquanto arrumava o caos de roupa em cima da cama. Não ia ficar. Viera de passagem, como o Sol que espreita por entre as nuvens num dia cinzento de inverno. O som do rádio distorcia-se por entre as interferências da sua saudade... Não ia ficar!

Olhou-a com todas as suas forças, tentando vislumbrar até à esquina ao pé da porta que quase não conseguia reflectir. Queria guardar o mais possível dela, marcar a sua imagem dentro de si para os dias repetidos de vazio.

Chegou o momento, a mala estava pronta, o casaco vestido e o cabelo penteado. Aproximou-se dele e olhou-o demoradamente. Suspirou, tirou do bolso o baton, pintou os lábios, e antes de sair, deu-lhe um beijo vermelho vivo que o marcou bem no centro de todas as emoções.


Liliana 29/01/2009




"Só de espelhos o crânio mobilado

Um corpo de mulher posto no centro

Outro jogo de espelhos lá por dentro

O meu crânio no centro colocado"


(David Mourão Ferreira)