O que te diz o espelho, David?
Ele
olhou-a de soslaio, lá do fundo do quarto.
Tinha saído do banho e vinha apenas com a toalha amarela com riscas
azuis enrolada à cabeça, como um grande cacho de frutas que cantava "o
que é que a baiana tem...".
Ligou
o rádio em cima da cabeceira empoeirada e, ao ritmo de uma qualquer
música da moda, balanceava o corpo enquanto tirava peças de roupa ao
acaso de dentro da mala de viagem. A cama foi-se enchendo com um emaranhado de
camisolas, soutiens, saias, blusas, cuecas, casacos... que escolhia,
experimentava e novamente despia, num frenesim de feira em plena
actividade.
Tinha
saudades dela! Há quanto tempo não a tinha assim, só para ele, para seu
deleite. Olhava para ela e lembrava os dias, anos, em que fora de facto
o seu companheiro de quarto. Horas que passaram a olhar um para outro,
olhos nos olhos, comungando da mais profunda cumplicidade.
Algo
mudara durante a sua ausência, estava mais desinibida, já não tinha
vergonha de o olhar assim, despida, antes parecia provocá-lo
propositadamente com aquele desfile bamboleante em trajes menores.
Ah!
Quanto tempo o deixara ali, sozinho. Há quanto tempo não via aquela
toalha a cantar "o que é que a baiana tem..."! Há quanto tempo não
sentia aquele nervosismo ritmado ao som da música que parecia aumentar
de volume cada vez que ela se aproximava e o olhava tão fixamente, quase
através dele...
Havia,
no entanto, uma certa amargura na sua expressão, uma mágoa que lhe
entristecia o olhar, como a névoa que paira sobre o Tejo nas manhãs de
Outono. O seu corpo dançava "como sempre, como antes", mas os seus olhos
denunciavam uma inquietação nova, que ele desconhecia. Havia nela algo
de novo, já não era a rapariga que crescera com ele, era uma mulher
decidida, desinibida, desiludida talvez, mas com vontade de viver, de se
recriar. Lia-o no seu corpo e nos seus gestos.
O
espelho olhou-a de soslaio, lá do fundo do quarto, na parede em cima da
cómoda. Estava vestida e continuava a balancear-se ao som da música do
rádio, enquanto arrumava o caos de roupa em cima da cama. Não ia ficar.
Viera de passagem, como o Sol que espreita por entre as nuvens num dia
cinzento de inverno. O som do rádio distorcia-se por entre as
interferências da sua saudade... Não ia ficar!
Olhou-a
com todas as suas forças, tentando vislumbrar até à esquina ao pé da
porta que quase não conseguia reflectir. Queria guardar o mais possível
dela, marcar a sua imagem dentro de si para os dias repetidos de vazio.
Chegou
o momento, a mala estava pronta, o casaco vestido e o cabelo penteado.
Aproximou-se dele e olhou-o demoradamente. Suspirou, tirou do bolso o
baton, pintou os lábios, e antes de sair, deu-lhe um beijo vermelho vivo
que o marcou bem no centro de todas as emoções.
Liliana 29/01/2009
"Só de espelhos o crânio mobilado
Um corpo de mulher posto no centro
Outro jogo de espelhos lá por dentro
O meu crânio no centro colocado"
(David Mourão Ferreira)