quarta-feira, outubro 17, 2012

Fica um bocadinho mais, Fausto...

Chove com força lá fora, as árvores dos jardins abanam os ramos para poupar as folhas que pingam gotas enormes que se esborracham no chão da calçada e correm para o Tejo.

Cá dentro a luz é fina, quase cinza, entrando pelas janelas altas que olham o rio. O gira-discos toca sem cessar "Por este rio acima" e as folhas com as letras das canções esvoaçam pela sala e aterram amachucadas no sofá. Fernão Mendes Pinto passa-me ao lado, cada palavra é apenas aquela palavra cantada naquele determinado tom e com aquele exacto ritmo, a que tento, repetidamente, chegar. 

As portas da sala são em par, brancas como as janelas que contrastam com o papel de parede em tons de amarelo. Abro-as e fecho-as conforme as canções começam ou acabam. Estou num palco e o meu público é o mundo todo, a vida por viver e os sonhos por criar, à minha frente, naquela sala, sentados no sofá grande ou empoleirados nas prateleiras dos livros e dos bichos de cristal da avó ou ainda espreitando pelas janelas, à chuva com pena de não conseguir entrar. Canto com Fausto como quem se senta à conversa com um velho amigo. As letras das canções, caídas no sofá, já estão misturadas de tanto terem sido lidas e relidas, agora conheço o disco como a palma das mãos. 

O Tejo, enche-se com a chuva que chega das ruas da cidade e bate-me palmas para incentivar a mais uma rodada. Na marginal os carros encavalitam-se e as buzinas animam a minha actuação. Lisboa está atrás do palco, escondida pelas portas em par que dão para o quarto dos avós. É-me, ainda, indiferente a cidade, sinto-a apenas nos cheiros do meu rio e nas suas mudanças de humor, mas não a convido para o concerto.

Chove e o meu bisavô, o "avô velhinho", já cego e com muita dificuldade em andar, acaba o lanche, corro pelo corredor para o agarrar antes da minha bisavó, a "avó uma" assim baptizada por mim em pequenina, e levo-o para junto do meu palco. Ficará sentado na primeira fila, no sofá pequeno, virado para mim para me ouvir melhor a mim que ao meu colega Fausto. Ri-se e bate palmas sempre que acabo uma canção com a paciência que apenas um bisavô pode ter, num final de tarde chuvoso. No fim do concerto enrosca-me no colo e diz-me "cantas melhor que ele!"

Chove com força, lá fora já não tenho o Tejo mas Lisboa. Também já não tenho o avô velhinho para me enroscar, mas continuo a ter janelas altas, que olham para a cidade, e portas em par que dão duma sala para a outra. Levanto-me devagar, quase como num ritual e procuro o CD "Por este rio acima". Ligo a aparelhagem, sento-me no sofá, fecho os olhos e, por momentos, podia jurar que ouvia o Tejo a bater palmas e o meu bisavô a dizer que canto muito melhor que o Fausto...

Liliana



Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel
Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas
leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima
Por este rio acima
Os barcos vão pintados
De muitas pinturas
Descrevem varandas
E os cabelos de Inês
Desenham memórias
Ao longo da água
Bosques enfeitiçados
Soutos laranjeiras
Campinas de trigo
Amores repartidos
Afagam as dores
Quando são sentidos
Monstros adormecidos
Na esfera do fogo
Como nasce a paz
Por este rio acima
Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei
Eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
Que eu também
meu bem
Por este rio acima
isto que é de uns
Também é de outros
Não é mais nem menos
Nascidos foram todos
Do suor da fêmea
Do calor do macho
Aquilo que uns tratam
Não hão-de tratar
Outros de outra coisa
Pois o que vende o fresco
Não vende o salgado
Nem também o seco
Na terra em harmonia
Perfeita e suave
das margens do rio
Por este rio acima
Meu sonho
Quanto eu te quero
Eu nem sei
Eu nem sei
Fica um bocadinho mais
Que eu também
Que eu também
meu bem
Por este rio acima
Deixando para trás
A côncava funda
Da casa do fumo
Cheguei perto do sonho
Flutuando nas águas
Dos rios dos céus
Escorre o gengibre e o mel
Sedas porcelanas
Pimenta e canela
Recebendo ofertas
De músicas suaves
Em nossas orelhas
leve como o ar
A terra a navegar
Meu bem como eu vou
Por este rio acima