quarta-feira, junho 15, 2011

Conta-me como foi, Sérgio...

Conta-me como foi, para que me lembre das vezes que nos rimos de mãos dadas. Diz-me de ti, de nós, para que nunca ponha em causa o que, um dia fomos e sentimos, e agora parece tão longe.
Não deixes que se me apague o tempo, no corpo cansado do mar e da chuva.

Conta-me como foi, para que fique guardado nas linhas da minha mão o caminho que partilhámos. Diz-me das canções, que juntos cantámos e dançámos à luz branca da lua.
Ajuda-me a guardar as memórias, nesta caixa que um dia abrirei para nos sentir e cheirar e ouvir, com um sorriso que hoje me foge pelos dedos como a areia dos dias.

Ah! Conta-me como o teu corpo no meu, se fez jardim e arco de mil cores, quando todos os sonhos eram possíveis. Sim, diz-me que também foste flor a nascer no meio da rebentação da praia dos desejos.
Não me deixes lavar o sal das lágrimas, que conserva as lembranças boas e faz de todo o passado um constante presente que não dói, apenas afaga a alma.

Deixa-me ser quem te faz sorrir, aquela que no tempo em que os desejos falavam, te encantou com histórias de fadas e cavaleiros andantes.
Deixa-me sorrir contigo, no cimo desta muralha que cobre o mundo, onde outrora descansámos as almas pesadas da inquietação das horas, e nos demos em corpo, suor e beijo.
Deixa-me sentar ao teu lado e lembrar as noites em que cantámos as canções que fazíamos em pautas desenhadas nos corpos nus.

Vem e abraça-me, num aconchego de quem já juntou as vozes e misturou os cheiros em madrugadas claras e horas de gemidos silenciosos.
Vem sem medos nem receios, porque quem já esteve tão perto nunca deixa de se querer bem.
Vem e dá-me a mão, sem dizer nada, sem palavras ou explicações, que os nossos olhos conhecem bem demais o fundo de cada olhar, e nada mais precisamos para nos sabermos de novo em casa, na casa dos sonhos.

Conta-me como foi, para que juntos inventemos a história por viver, do que ainda podemos ser, agora que chegou a hora... de dizer adeus!

Liliana




"Com um brilhozinho nos olhos
e a saia rodada
escancaraste a porta do bar
trazias o cabelo aos ombros
passeando de cá para lá
como as ondas do mar.
Conheço tão bem esses olhos
e nunca me enganam,
o que é que aconteceu, diz lá
é que hoje fiz um amigo
e coisa mais preciosa
no mundo não há.

Com um brilhozinho nos olhos
metemos o carro
muito à frente, muito à frente dos bois
ou seja, fizemos promessas
trocamos retratos
trocamos projectos os dois
trocamos de roupa, trocamos de corpo,
trocamos de beijos, tão bom, é tão bom
e com um brilhozinho nos olhos
tocamos guitarra
p'lo menos a julgar pelo som

E que é que foi que ele disse?
E que é que foi que ele disse?
Hoje soube-me a pouco.
Hoje soube-me a pouco.
Hoje soube-me a pouco.
Hoje soube-me a pouco.
passa aí mais um bocadinho
que estou quase a ficar louco
Hoje soube-me a tanto
Hoje soube-me a tanto
Hoje soube-me a tanto
Hoje soube-me a tanto
portanto,
Hoje soube-me a pouco

Com um brilhozinho nos olhos
corremos os estores
pusemos a rádio no "on"
acendemos a já costumeira
velinha de igreja
pusemos no "off" o telefone
e olha, não dá p'ra contar
mas sei que tu sabes
daquilo que sabes que eu sei
e com um brilhozinho nos olhos
ficamos parados
depois do que não te contei

Com um brilhozinho nos olhos
dissemos, sei lá
o que nos passou pela tola
do estilo és o "number one"
dou-te vinte valores
és um treze no totobola
e às duas por três
bebemos um copo
fizemos o quatro e pintámos o sete
e com um brilhozinho nos olhos
ficamos imóveis
a dar uma de "tête a tête"

E que é que foi que ele disse?...

E com um brilhozinho nos olhos
tentamos saber
para lá do que muito se amou
quem éramos nós
quem queríamos ser
e quais as esperanças
que a vida roubou
e olhei-o de longe
e mirei-o de perto
que quem não vê caras
não vê corações
com um brilhozinho nos olhos
guardei um amigo
que é coisa que vale milhões.

E que é que foi que ele disse? ..."
Sérgio Godinho (in "Canto da boca" - 1981)