Há dias em que tapo, cuidadosamente, a entrada escura com um manto de flores que apanho nos campos confiantes e férteis.
Dias há em que o vento se rebela e num sopro forte, ondula os campos e espalha as flores desordenadas pelo chão frio de uma casa desarrumada.
Nesses dias, em que não encontro o arco com que me pinto e salpico a vida, sinto uma força imensa que me chama para esse buraco escuro onde me sinto cair, Alice num mundo desencantado.
Sei da luz com que, por vezes, ilumino as noites e até da serenidade com que, de tempos a tempos, consigo viver, mas oiço apenas o vento a soprar...
Sei dos cânticos e das danças e das palavras que em mim moram, mas vejo apenas o vazio, o silêncio e a solidão...
Quem dera... Quem dera saltar por cima dos medos e no fundo do poço encontrar, apenas o meu reflexo num espelho de distorcer, como os das Feiras, dar a volta e perceber o truque, entender as razões e rir comigo própria... Quem dera... Quem dera descer e encontrar o fio-condutor que me faz falta para equilibrar a bússola e descobrir o caminho de volta... a mim.
Há em mim um poço tão fundo, tão escuro, que não me atrevo a desenterrar o que lá está com medo da dor que me pode secar.
Seria esse o segredo para todas as perguntas?...
Liliana
"Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo."
(Etty Hillesum in Diário - 26/8/1941).