quinta-feira, janeiro 13, 2011

E se pudesses entrar na minha vida, Chico?!


Espreito pelas janelas esverdeadas o imenso mundo que me envolve. Vejo as pessoas que me interpelam, sinto as que me tocam, doem-me as que não me vêem, e conto-lhes, conto-lhes histórias das mil e uma noites que sonhei nas luas com que não dormi.

Espreito as janelas abertas, iluminadas por dentro com o calor das vidas que se cruzam, e oiço os rios de histórias que escorrem de cada uma em pequenas cascatas e desaguam na calçada. Pego nelas e levo-as comigo, para mais tarde retocar.

Percorro as ruas estreitas e escuras que envolvem o Castelo e salpico as roupas penduradas com as histórias que inventei ao descer as escadas. Todos me cumprimentam e me conhecem na minha história. Mudo de roupa, troco palavras por sorrisos e apago os carros mal estacionados as chuvas que inundam a cidade a lama que suja as botas o trânsito infernal e os medos que teimam entrar na história.

Desço à baixa e danço ao som da banda-sonora da história que conto de mão dada com o Tejo. Como gosto deste rio! Imagino-me gaivota e levanto-me num voo em contra-corrente "por este rio acima", enquanto as margens se sucedem e alteram a meu bel-prazer.

Volto à cidade que me chama no corropio do dia-a-dia. Entro na minha história com outra no bolso (só para o caso de necessidade). Aponto, programo, sorrio, projecto, avalio, corrijo, sorrio, recomeço, apresso-me, compreendo, sorrio, altero, faço pontes, defendo, sorrio, sublinho, explico, procuro... e sorrio.

Volto para casa com uma história (às vezes mal) arrumada e outra prestes a nascer. Alguém ao fundo da rua, mesmo no meio da passadeira, acena um adeus e diz "está sempre tão bem disposta!"
Sorrio para dentro e espreito pelas janelas esverdeadas o imenso mundo que me envolve e invejo a forma como os outros me vêem das suas janelas. Entro no carro e enquanto dou à chave, dou início a uma nova história.
Era uma vez...

Liliana





"Olha...
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da actriz?
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro paí­s
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida...

Olha...
Será que é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da actriz?
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida...

Sim, me leva para sempre, Beatriz!
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha...
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da actriz?
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se um arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida..."

"Beatriz" de Chico Buarque