quarta-feira, outubro 14, 2009

Tens tempo para mim, António?


Saiu da cozinha devagar e entrou no quarto sem que dessem pela sua ausência. Fechou a porta devagar e sentou-se na cama. Em frente a ela o grande espelho numa moldura escura que lhe falava dos dias passados, dos olhares furtivos, dos risos esquecidos e das lágrimas por ele abafadas. Endireitou as costas e tentou sorrir-lhe mas ele não respondeu ao seu olhar, e ela acabou por se sentir ainda mais sozinha naquele quarto com duas janelas.

Respirou fundo, olhou para a janela grande virada para a rua que lá fora, indiferente às suas mágoas, corria numa agitação de fim detarde em crianças saídas da escola e carros procurando estacionamento. Levantou-se virada para a rua mas a outra janela, a pequena, virada para o pátio antigo e com o estore meio torto no cimo dos vidros, que velava o pouco sol que ainda entrava no quarto, chamou-a num silêncio "de móvel que estala".

Abriu a janela e espreitou os pátios antigos dos prédios antigos à volta, com pequenas floreiras e casotas de cão, com as cordas pesadas à força das toalhas velhas do cabeleireiro de velhotas em baixo e dos cueiros do neto da vizinha de cima que gritava, também à janela enquanto a avó, numa azáfama circense, lhe tentava em vão dar a papa. Ali tudo estava sempre no lugar certo e bem arrumado, era a sua réstia de segurança num mundo que passava depressa demais para o tamanho das suas horas.

Espreitou para os vasos de margaridas do prédio ao lado, sorriam ao sol que se despedia num até já enquanto o cão do rés-do-chão lambia a papa do bebé dos gritos que aterrava fora da pista. Tudo tinha o seu lugar bem definido e por mais rápidas que passassem as horas, nada parecia incomodar-se ou alterar-se. Nem mesmo o gato da Dª Chica, a senhora de cabelo azulado que vivia no primeiro andar, que teimava em descer as escadas de serviço e provocar o coitado do cão, que quase perdia a voz de tanto resmungar, parecia perturbar aquela paz. Tudo se regia por uma batuta de todos conhecida e sem grandes inovações.

A brisa que entrava pela janela invadia o quarto e, também ele, parecia afastar-se da correria citadina que buzinava ali mesmo ao lado. Aquela janela era a guardiã da sua paz interior e ela esquecera-se dela no meio das horas apressadas.

A realidade chamava em vozes animadas lá ao fundo. Na cozinha a vida continuara no ritmo estonteante de Lisboa. Ela, devagar, fechou a janela como quem fecha a caixinha das jóias, abriu a porta do quarto e, antes de sair, espreitou para o espelho que lhe piscou o olho.


Liliana






"Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas qu'a amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação ao caos
à confusão da harmonia."
"Todo o tempo é de poesia" de António Gedeão
in Movimento Perpétuo