quarta-feira, setembro 16, 2009

Estás a falar com o meu reflexo, Pascoaes!

- Estarás a falar para mim? 
Disse ela baixinho como se falasse sozinha, como se ele não estivesse ali, mesmo em frente a ela, a meio de uma conversa que, segundo ele, era uma conversa importante, quem sabe até "fracturante" como dizem os jornalistas da moda.

- Falo para ti sim, com quem mais falaria?! Que pergunta tão parva! Na verdade, ainda não me respondeste... não sei processar os silêncios... Avancei depressa demais? Achas que exagerei. Eu sabia, não devia ter falado. Agora já não sei que dizer mais. Não posso voltar atrás. Já estás zangada... 
A voz dele foi diminuindo de tom até que se tornou inaudível.

Ele enervado, ela nervosa. Os dois confusos sem dúvida. O silêncio abafou os barulhos de fundo. A cidade inteira em surdina para lhes dar espaço às palavras que diziam para dentro à procura da melhor resposta, da frase correcta, da solução certa.

- Não sei que te diga, não estou certa de ter entendido a questão. Parece-me que procuras resolver um problema que pensas que eu tenho. Mas, na verdade, eu acho que tu é que tens questões por resolver.

- Eu é que tenho questões?! 
Desta vez era ele que falava para dentro, como que entrando num diálogo com ele próprio.

- Sim! Começaste a conversa dizendo que me querias ajudar a resolver questões que te parecia que me afrontavam, mas eu sempre percebi que tu te sentes desconfortável, como se algo te atormentasse. Então agora sou eu que te quero quero ajudar a resolver essas questões que estou certa te saltam ao espírito no dia-a-dia. 
Ela, desta vez decidida, aproximou-se dele como quem fala com uma criança.

- Ah! Não inventes! Eu não tenho questões nem desconforto nenhum. Tu é que pareces uma donzela arrependida cada vez que te questiono. Aposto que te róis com dúvidas ou medos ou indecisões! 
Afastando-se, ele respondeu esbracejando como um polícia sinaleiro.

- Estarás a falar para mim?! 
Perguntou ela, novamente baixinho, afastando-se dele.

- E tu, estarás a falar de mim? 
Respondeu ele também baixinho, também de longe como quem joga às escondidas com as palavras.

- Estou a falar do que sempre me pareceu que tu sentes... 
Disse ela, cada vez mais baixo, cada vez mais longe.

- E eu, do que sempre tive certeza que tu pensas... 
Disse ele para dentro, como que pedindo desculpa às pedras da calçada. Enquanto os barulhos de fundo voltavam ritmadamente. 

A cidade inteira acordou num suspiro paternalista de quem está habituado a ouvir monólogos partilhados entre reflexos de pessoas.

Liliana Lima
16/Set/2009



"A realidade não está nas aparências transitórias, reflexos palpitantes, simulacros luminosos, um aflorar de quimeras materiais. Nem é sólida, nem líquida, nem gasosa, nem electromagnética, palavras com o mesmo significado nulo. Foge a todos os cálculos e a todos os olhos de vidro, por mais longe que eles vejam, ou se trate dum núcleo atómico perdido no infinitamente pequeno, ou da nebulosa Andrómeda, a seiscentos mil anos de luz da minha aldeia!"

"A essência das Coisas" de Teixeira de Pascoaes

in "O Homem Universal"