quinta-feira, agosto 13, 2009

Vamos ver o teatro, Gastão?

Sobe a cortina e acendem-se os focos. No palco a acção desenrola-se entre o programado e os pequenos imprevistos, que tantas vezes alteram o decorrer do esperado, conhecido e até ensaiado. Lá ao fundo, num canto escondido, uma fagulha brilha ainda quente da fogueira que a acendeu. Não se vê, não entra na cena, não se ouve, nem tem deixas onde entrar. Está ali simplesmente, lembrando a fogueira que, outrora, ali ardeu. A cortina desce e as luzes apagam da memória quaisquer rastos de outros actos.
Sobe a cortina e com ela o sol que se levanta por detrás das árvores e das pontes e das casas e dos homens que dormem ainda na quietude das noites de verão. A acção desdobra-se em vários palcos que se espalham um pouco por toda a linha do horizonte. Não há harmonia entre as cenas que se sucedem num remoinho de diálogos que se cruzam e desdizem entre si. Os personagens vagueiam entre sentimentos e responsabilidades, entre culpas e lembranças, entre desejos e amarguras, num equilíbrio coxo. Desce a cortina enquanto os bailarinos se apoiam nas palavras que pairam ainda no ar matinal.
Sobe a cortina e a lua, uma enorme e redonda lanterna recortada no céu escuro da noite, inunda toda a acção num amarelo baço que romantiza os diálogos e acorda os sonhos. Uma sombra disforme atravessa o campo de visão. Passa por cada personagem como um sopro vindo de outras peças, de outras noites e fala-lhes de medos antigos, ou talvez de sonhos esquecidos, ou talvez de amores perdidos, ou talvez apenas de sombras do vento no calor da noite. Enquanto não desce a cortina, a sombra mantém-se no centro da acção, inibindo as conversas, forçando os movimentos, consumindo toda a atenção como um grande buraco negro.
Sobe a cortina e um enorme arco-íris reluz de um lado ao outro do palco. Os sonhos dançam livres e no ar uma leve brisa marinha embala os sentidos numa valsa "a mille temps". Borboletas passam em bandos colorindo o cenário e as nuvens desfazem-se em pequenas bolas de sabão ao mais pequeno toque. Ninguém aparece em cena. Os personagens principais e secundários parecem ter adormecido num sonho de encantar e o tempo, controlado por pequeno relógio de bolso deixado ao acaso no chão, segue alegre ao ritmo acelerado da orquestra. A cortina começa a descer, mas os espectadores agarram as cordas e sobem ao palco onde se instalam confortavelmente no primeiro tufo de relva vago que encontram. A acção começa onde onde a história devia acabar.
Liliana Lima



"Vêm de dentro repelidos
Conforme o seu destino a sua cor varia
pois escolhem a base de acordo com
a luz que o rosto cria

À frente da cortina enfrentam
o vazio que lhes dava guarida
Em sepulcros abrigam
as faces atingidas

No palco deambulam como num
tempo estreito entre duas crateras
a que na sua frente lhes recolhe os soluços
e o nada donde vieram"

"Os actores" de Gastão Cruz, in "As Leis do Caos"