domingo, maio 03, 2009

Temos todo o tempo do mundo, Drummod...

Saímos da auto-estrada enquanto o Sol, calmamente, avança a caminho do horizonte. Os campos estão amarelos com tufos de azul que fazem lembrar o Tejo. Ao fundo o céu ganha uma cor incerta que se esbate numa aguarela, rosa, amarelo, lilás. O bebé dorme, numa respiração lenta e profunda. O carro segue o caminho, alheio às palavras que, lentas também, vão ganhando formas no calor que dança sobre o asfalto.

Vivo a duas velocidades. Uma que segue com o carro, atenta ao caminho, ao bebé que dorme, aos outros carros que por nós se cruzam, às refeições, às paragens e às horas que, aqui, passam rápidas, certas, sempre pontuais. Outra, que brinca às escondidas com a Lua enquanto o Sol se esforça ainda por brilhar, que espera pelas estrelas para descobrir a Ursa Maior e que finge não saber ler as horas porque, aqui, o tempo é lento e baralha os ponteiros que rodam ao ritmo das ideias.

Enquanto o carro avança por entre campos e campos que aos poucos se tornam pardos, como os gatos nos telhados das cidades, o meu tempo passa do ponteiro dos minutos para o ponteiro das horas. As palavras movem-se mais lentamente e as ideias não temem demorar tempo a saltar entre uma e outra. Este é o tempo em que consigo perceber o mundo, normalmente tão saltitante e escorregadio que me perco, ou deixo perder, para não me perder realmente nele. Este é o tempo em que me envolvo nas palavras e abraço as ideias, em que descodifico os sinais e leio as mensagens que não tive tempo para entender.
Durante muito tempo evitei olhar este tempo em que tudo gira devagar. Durante muito tempo envergonhei-me do tempo que demoro até ter tempo para me ouvir. É aqui, no intervalo do tempo que corre entre o ponteiro das horas, que me encontro e me permito parar. É aqui que as palavras se encaixam em frases e ideias, em mensagens e recados que o mundo me envia e que, por falta de tempo, faço esperar. Só aqui, consigo descodificar e assimilar o tempo e o que com ele veio.
O bebé dorme. O carro segue o caminho e eu tenho todo o tempo do mundo!
Liliana Lima

"Qualquer tempo é tempo.
A hora mesma da morte
é hora de nascer.

Nenhum tempo é tempo
bastante para a ciência
de ver, rever.

Tempo, contratempo
anulam-se, mas o sonho
resta, de viver."
"Qualquer tempo" de Carlos Drummond de Andrade
in 'A Falta que Ama'