sábado, março 28, 2009

Que força é essa, Sérgio?

Vagueio pela cidade num fim de dia abafado, misturo-me no meio de tanta gente que passa distraída por mim, mães nervosas com as crianças penduradas numa correria em contra-relógio, homens de fato escuro e olhar cerrado pensando nas muitas coisas que deixaram por fazer, namorados levitando numa alegria de olhares cúmplices, adolescentes em bandos que passam rindo e falando alto sem ligar aos encontrões que fazem tropeçar as velhinhas com sacos de supermercado...
Vagueio pelas ruas sem destino certo nem horário definido, ando apenas, percorrendo as ruas da cidade com o Tejo como pano de fundo. Olho de soslaio para uma montra despida e podia jurar que ele, o reflexo torto e ondulado chama por mim... Olho em volta para me certificar que é a mim que o reflexo chama, não há ninguém ali apenas eu e ele, o reflexo torto numa montra despida. A cidade parou para eu estar à vontade.
Aproximo-me da montra e ele, o reflexo torto que chamava por mim, fica repentinamente mais nítido, mais claro, faz-me sinal e como quem conta um segredo diz-me que as andorinhas já regressaram, o sol brilha quase beijando o Tejo e as árvores vestem-se com as cores da nova estação. "E tu, que força é essa que te põe de bem com outros e de mal contigo?" Afasto-me para o ver melhor mas a montra nua devolve-me somente o meu ar espantado num reflexo torto. As pessoas voltam a passar, distraídas e apressadas e a cidade retoma o seu burburinho de fundo.
Sinto um calor intenso que me aperta o peito e me invade os olhos, enquanto um novo bando de adolescentes invade a rua e encobre a montra abalroando as velhotas que, indignadas, resmungam contra os tempos. Deixo-me levar pela corrente de gente apressada que desce a cidade até chegar ao Tejo. Os comboios e barcos enchem-se e à hora certa levam consigo os relógios e os carros e o burburinho que inquietava a cidade. Aos poucos o Sol esconde-se no Tejo num abraço profundo e as luzes trémulas dos candeeiros acendem-se em pequenas ilhas amareladas que dão às docas um ambiente nostálgico de final de século.
Dói-me a cabeça, e embora o silêncio tenha afogado por completo a cidade, oiço mil vozes que parecem vir do rio e que perguntam em vários tons "Que força é essa que te põe de bem com outros e de mal contigo?" Aproximo-me das águas que me devolvem mil reflexos espelhados na ondulação do rio. Olho para todos eles, reflexos incompletos dançando com a ondulação e revejo-me em cada um.
Sento-me e tiro os sapatos, molho os pés no rio como que procurando um diálogo com as águas. A cidade ficou suspensa, aguardando o meu regresso, não há carros, nem pessoas, nem agitação, nem barulho, apenas o rio, eu e eles, os meus reflexos incompletos. A brisa da noite traz uma música antiga que repete o refrão vezes sem conta, como um disco riscado. As águas olham-me através dos meus olhos reflectidos em mil espelhos.
Respiro fundo, fecho os olhos e sinto novamente um calor intenso que me percorre o corpo e me afoga os olhos. Agarro uma lágrima que tenta cair com a certeza de que, se começar não paro mais. Engulo os soluços e afasto o mar dos olhos. Controlo-me. Recomponho-me. Afasto-me do rio e viro-lhe as costas.
A cidade acorda os carros e as pessoas e o barulho porque me sente a voltar. Misturo-me no meio de tanta gente e tento sorrir às andorinhas que se acalmam nas copas das árvores e se preparam para dormir. Ao fundo oiço o Tejo que me chama, não ligo e recomeço a andar sem olhar para as montras.
Chego a casa e deito-me sem passar pelo espelho na parede ao fundo do quarto. Fecho os olhos e digo baixinho como que sussurrando para alguém ao meu lado "Não é hoje que te vou ouvir". Viro-me de lado e afasto as vozes que ecoam na minha cabeça com a certeza de que, um dia, terei mesmo de lhes responder.


Liliana Lima


Com a canção de Sérgio Godinho "Que força é essa" no ouvido (e aqui, num post antigo do Curvas).